Com estreia marcada para o dia 31 de julho no Itaú Cultural, o espetáculo ORioLEAR marca um momento simbólico na trajetória do produtor Alexandre Brazil. À frente do Escritório das Artes, que completa 20 anos em 2025, ele chega ao décimo texto de William Shakespeare produzido por sua equipe. A nova montagem, dirigida e escrita por Newton Moreno, é uma livre adaptação de Rei Lear e propõe uma reflexão contundente sobre a urgência climática, os conflitos fundiários e os fantasmas da ditadura no Brasil. Ambientado na Amazônia, o espetáculo transforma o trono em latifúndio e as disputas familiares em metáfora das lutas pela terra, pela memória e pelo futuro. Nesta entrevista, Alexandre Brazil comenta os desafios de levar Shakespeare ao palco com olhar contemporâneo, os caminhos artísticos de sua produtora e o papel do teatro em tempos de emergência ambiental e política.
Bob Sousa – ORioLEAR é o décimo texto de Shakespeare produzido pelo Escritório das Artes. O que representa essa marca simbólica para você e para a trajetória da produtora nesses 20 anos?
Alexandre Brazil – Produzir teatro é uma batalha constante — e cada montagem representa uma vitória. Nos dias de hoje, essa vitória é ainda maior quando se trata do teatro de texto, pois vivemos em uma era cada vez mais voltada ao visual, em que escutamos cada vez menos.
O teatro de Shakespeare, por exemplo, foi feito para ser ouvido, não apenas visto. Não por acaso, ele se dirige ao público chamando espectadores repetidamente de “gentis auditores”.
Por isso, insisto na palavra “vitória”: é um privilégio — e uma conquista — poder, ao lado de artistas incríveis, manter viva uma das tradições teatrais mais fundamentais, que é a tradição shakespeareana. Precisamos preservá-la, assim como tantas outras raízes do nosso teatro, para compreendermos o nosso ofício: de onde ele veio e para onde ele pode ir. Ter podido contribuir, ao longo desses vinte anos, com tudo isso, por meio de dez montagens de William Shakespeare em terras brasileiras, é motivo de imenso orgulho para todos nós do Escritório das Artes.
Bob Sousa – O espetáculo une o universo shakespeariano à crise ambiental e à questão fundiária brasileira. Como essa proposta chegou até você e o que mais te motivou a viabilizá-la?
Alexandre Brazil – Newton Moreno é uma paixão antiga. No ano passado, durante um telefonema, ele me falou sobre ORioLEAR e perguntou se eu me interessaria em embarcar com ele nessa empreitada. Respondi que sim, sem hesitar — foi simples assim.
Dois fatores me motivaram: o primeiro, claro, foi a oportunidade de trabalhar com Moreno; o segundo, a percepção de que já passava da hora de olhar com mais atenção para o meu país e contribuir com o que sei fazer — expressar-me através do teatro. E os temas abordados no espetáculo são um prato cheio para isso.
Bob Sousa – Esta é a primeira colaboração entre o Escritório das Artes e Newton Moreno. Como se deu esse encontro e o que mais te instigou na proposta dramatúrgica e na visão cênica que ele trouxe para ORioLEAR?
Alexandre Brazil – Como eu disse, o nosso namoro profissional é de longa data. Newton sempre me lembrou um dos meus grandes mestres no teatro, Emilio Di Biasi. Assim como Emilio, Newton carrega uma sabedoria que parece não caber no tempo de sua existência — e isso sempre me fascinou ao assistir aos seus espetáculos.
No caso específico de ORioLEAR, o olhar de Newton sobre a possibilidade de transpor a obra shakespeareana para a nossa realidade, aqui abaixo do Equador, como continuidade da pesquisa iniciada no espetáculo SUEÑO, foi mais do que suficiente para que eu arregaçasse as mangas, junto com minha equipe incrível, e tornássemos esse novo espetáculo possível.
Bob Sousa – Produzir uma peça dessa magnitude, com elenco numeroso, cenografia complexa e dramaturgia original, exige articulação intensa. Quais foram os principais desafios de produção enfrentados nesta montagem?
Alexandre Brazil – É sempre um desafio, um recomeço. Realizar uma produção como ORioLEAR, com mais de cinquenta profissionais diretamente envolvidos na construção da obra, exige uma força interior imensa para garantir que todas as condições da montagem sejam, no mínimo, dignas. E espero, sinceramente, que em breve possamos ultrapassar o “mínimo digno” na produção do nosso teatro.
A produção de ORioLEAR tem sido um exercício maravilhoso de compreensão e aprofundamento, pois sua temática nos toca profundamente. Do ponto de vista econômico, contamos com o apoio fundamental do ProAC, da PNAB e do Itaú Cultural. Ainda assim, acredito que o maior desafio será garantir a continuidade de um espetáculo tão grandioso. Mas tenho confiança de que superaremos mais essa etapa — e tenho a certeza de que ORioLEAR ainda seguirá por muitos caminhos.
Bob Sousa – Pensando no futuro, quais textos de Shakespeare ainda estão no seu horizonte? E como você enxerga a continuidade desse diálogo com o bardo em novas montagens que reflitam questões urgentes do nosso tempo?
Alexandre Brazil – Sempre tive o desejo de montar todos os textos de Shakespeare, pois acredito ser fundamental deixar esse legado para o Brasil. Existem obras dele que nunca foram encenadas por aqui, e uma companhia shakespeareana estável seria um caminho excelente para levar esses textos ao público.
Para isso, o Escritório das Artes, em parceria com Karol Garret e Juliano Barone, está atualmente estruturando o lançamento da R.O.S.E., uma companhia dedicada à obra do Bardo.
Tenho também, com Ulysses Cruz, o projeto de montar Cleópatra no ano que vem. Essa montagem se justifica plenamente, pois trata da história de uma mulher extraordinária, que certamente provocará um amplo debate sobre as questões da mulher na contemporaneidade.
Agradecemos ao Teatro Garagem, da atriz Anette Naiman, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.