
Talita Rebizzi e Maitê Lacerda, por Bob Sousa
Pensar uma Bienal de Dança é também coreografar encontros. Na 14ª edição, Campinas se torna campo expandido para corpos que cruzam fronteiras, desestabilizam certezas e criam outras maneiras de estar juntos. Entre os nomes que assinam a curadoria, Maitê Lacerda e Talita Rebizzi se destacam por compor uma escuta sensível, capaz de entrelaçar tradição e vanguarda, território e deslocamento, cena local e diálogos globais. Seu trabalho no Sesc São Paulo parte da compreensão de que a programação é uma forma de escrita: uma partitura que desenha percursos, escolhas e tensões. Ao lado de Ana Carolina Massagardi, Ana Dias de Andrade, Augusto Braz, Cléber Tasquin, Marcos Takeda, Marcos Villas Boas, Mateus Menezes, Paula Souza, Sara Regina Centofante, Simone Aranha e Vinicius Souza e do artista convidado Flip Couto, elas conceberam uma edição que investe em corpos dissidentes, cosmologias não coloniais e propostas de mediação inéditas, transformando o festival em experiência de convívio e pensamento crítico. Nesta conversa, Maitê e Talita refletem sobre os bastidores da curadoria, o desafio de mapear a produção contemporânea e o compromisso de fazer da Bienal um lugar de multiplicidade e transformação.
Bob Sousa – A curadoria é muitas vezes invisível, mas determina o pulso do festival. Como vocês se reconhecem nesse gesto de “escrita de uma edição” e que histórias desejaram contar com a Bienal de 2025?
Maitê Lacerda e Talita Rebizzi – O processo de curadoria da Bienal Sesc de Dança precisa ser compreendido dentro do contexto em que o festival é realizado. O Sesc opera de uma maneira que permite que as pessoas circulem por diferentes linguagens e Unidades ao longo de suas carreiras. Assim, a coordenação artística da Bienal passou e passa por diferentes pessoas, todas comprometidas em articular as premissas institucionais com as discussões da cena – no nosso caso, a dança.
Esse preâmbulo é importante para entender que nosso trabalho curatorial vem sendo construído de modo coletivo dentro da instituição, buscando envolver o maior número possível de pessoas que pesquisam e programam dança nas Unidades. Essa escolha de composição da equipe se dá para que essa escrita, como você comenta, possa conter em si mais vozes.
Nosso objetivo é construir uma Bienal protagonizada pelas obras artísticas, pelos artistas que as criam e pelo público que participa das ações. Assumirmos o papel de curadoras e curadores do festival representa uma forma de responsabilização pelas escolhas feitas, não uma assinatura que busca se sobrepor aos trabalhos apresentados.
Ao falar sobre o pulso do festival, prezamos por uma programação que nos possibilite estar cada vez mais próximos da classe de artistas da dança e, sobretudo, da cidade de Campinas. Nesse sentido, a presença de artistas e pesquisadores de fora da instituição é fundamental para trazer inquietações, pesquisas e contextos diversos, desafiando nossas percepções e ampliando constantemente nossas investigações.
As histórias que emergem desse processo são muitas. Talvez o eixo principal seja: como podemos olhar para as múltiplas danças existentes no Brasil? O que elas nos revelam? Como elas se relacionam com as danças de outros lugares? Como elas interagem entre si a partir dos deslocamentos das pessoas que as produzem?
Bob Sousa – A programação traz corpos que desafiam limites estéticos, políticos e sociais. Como se dá para vocês a escolha de obras que não apenas representem diversidade, mas que também provoquem deslocamentos no olhar do público?
Maitê Lacerda e Talita Rebizzi – A diversidade é um ponto de partida para a Bienal – e para o Sesc. Já não é mais sobre representar, mas contemplar e celebrar as existências. A construção da programação parte de pesquisas e atenções aguçadas para os debates vigentes no dia a dia. E com “nosso dia a dia” queremos dizer de tudo que atravessa o cotidiano social e político – não somente os nossos, mas aqueles que talvez ainda precisem de um maior debate e discussão coletiva. Trabalhar com curadoria e programação, é também um exercício constate de sensibilidade e escuta. Neste exercício, éticas, estéticas, das mais locais às de grande repercussão global, podem participar de uma trajetória curatorial.
Se deslocar pode ser dar um passo para o lado, há que se considerar que a Bienal recebe públicos com experiências e aproximações diversas com a dança, então esse deslocamento pode acontecer de diferentes maneiras: escutando uma palestra de algum artista que ele não conhece; participar de uma aula aberta de um estilo de dança novo para ele; ser surpreendido por uma apresentação em espaço aberto; pegar o caderno de programação e resolver comprar um ingresso de um espetáculo cujo título, sinopse ou foto lhe chamou atenção.
Talvez, o principal deslocamento seja descontruir um olhar limitante daquilo que é considerado dança e que pode estar num festival.
Bob Sousa – Pela primeira vez a Bienal apresenta um projeto educativo voltado à mediação em dança. Qual foi o pensamento por trás dessa decisão e que futuro vocês vislumbram para esse eixo de trabalho nas próximas edições?
Maitê Lacerda e Talita Rebizzi – Pensar um projeto educativo para a Bienal é um desejo que permeia nossas discussões há algumas edições. Já foram realizadas algumas experiências dentro da programação que tinham por objetivo trabalhar a mediação e a formação de público, mas essas ações aconteceram diluídas pelas apresentações ou ações formativas.
Neste ano, decidimos contar com uma equipe dedicada exclusivamente a essa área e convidamos o Coletivo alingua para pensar com a gente e coordenar as ações durante o festival.
A ação educativa proporá abordagens voltadas a diferentes públicos, espaços e obras da Bienal, com atuações em apresentações nas praças e nos diversos espaços cênicos da cidade. Além disso, o trabalho contemplará o atendimento ao público espontâneo e a grupos de escolas e instituições.
A equipe também investiga novas formas de diálogo e aproximação com novos públicos, com o objetivo de ampliar as oportunidades de fruição e troca em torno da programação. As obras, por si só, oferecem um amplo campo de experiências; mas investimos nesta prática para estimular reflexões nos antes e depois das apresentações.
Nosso desejo é ampliar, a cada edição, o número de educadores envolvidos e de grupos recebidos. Mais do que isso, buscamos consolidar um trabalho continuado com crianças e jovens. Assim, quem sabe, além de formar público, a Bienal possa também inspirar futuros artistas da dança.
Bob Sousa – As obras selecionadas cruzam questões urgentes como colonialidade, memória, dissidência de gênero e ancestralidade. De que modo esses temas emergiram na pesquisa curatorial e como dialogam com o contexto brasileiro atual?
Maitê Lacerda e Talita Rebizzi – Podemos dizer que as questões pulsavam fortemente nas obras: de algum modo elas se apresentaram para a gente como assuntos desse momento, criavam uma topografia que nos convidava a trafegar – e a partir delas muitos arranjos foram possíveis. Desejamos que esses assuntos nos tragam um senso de comunidade – mesmo com aquilo que não imediatamente nos pareça direcionado.
Desde a edição de 2023, temos buscado revisitar a história da Bienal – sem esquecer o contexto social e político de cada edição – nos questionando quais artistas e quais corpos sempre estiveram ou nunca estiveram na programação e o que isso pode nos dizer hoje. Importante dizer que não é uma busca por certo ou errado, e sim um método que nós, que ocupamos esse lugar hoje no Sesc e na Bienal, encontramos de pensar a construção das programações e de provocar nossas pesquisas e das pessoas que trabalham com a gente. Essa movimentação, esse deslocamento, nos coloca em contato com artistas, pesquisas e protagonismos diversos.
Nos colocamos a proposta de encontrar ecos de uma produção mundial que possa posicionar as discussões do Sul Global – do modo de produzir aos assuntos – e que possa dar frutos que venham de nossas raízes, nossas produções de conhecimento, nossas identidades e modos de vida. Estamos conectados com o movimento de recontar as histórias. É uma programação que apresenta uma fértil resistência à constante colonização imposta pelo Norte Global, que vem há séculos impondo modelos e gerando destruição com seus métodos de pensar a existência no mundo.
Na curadoria da Bienal, de modo geral, buscamos trazer artistas estrangeiros que estejam dispostos a trocar com artistas que aqui estão nesse chão, abandonando aquela ideia de que a gente só tem coisa para aprender e nada para ensinar. Compartilhar vivências e saberes é o que nos interessa hoje.
Bob Sousa – Curar uma Bienal é, de certo modo, desenhar uma cartografia da dança no mundo hoje. Quais territórios ou artistas vocês sentiram que precisavam ser incluídos para que essa cartografia fosse mais justa e múltipla?
Maitê Lacerda e Talita Rebizzi – Estamos num exercício constante de esticar a programação para que ela possa, justamente, encostar em contextos diversos.
Este ano, o que aparece enfaticamente – e a presença do Flip Couto na equipe de curadoria contribui imensamente para isso – são as programações acerca da cultura ballroom. É fato que há um aumento nas apresentações das Balls nas programações de dança no Brasil e no mundo, então, propomos um mergulho neste universo no intuito de compreender a importância das artistas desse contexto e seus métodos de profissionalização.
As Balls são para a sua comunidade, um instrumento de reinvenção de si e do mundo. É riquíssima em diversas frentes: no movimento, no figurino, na formação de comunidade e na discussão de políticas públicas. Assim, além da ball, realizaremos uma roda de conversa, uma conferência com a Jonovia Chase (figura de grande importância na cena ballroom estadunidense), um workshop de fotografia e duas oficinas, para mostrar um pouco de todo o trabalho realizado pelas casas e ressaltar o quanto essas artistas investem no desenvolvimento de suas técnicas para se apresentarem nas grandes balls.
A instalação Cosmologias Ballroom coroa toda essa programação proporcionando ao público uma aproximação minuciosa com essa cultura – onde será possível conhecer um pouco sobre as histórias de personalidades importantes da cena Ballroom brasileira.
Bob Sousa – Depois de meses de pesquisa, escolhas e negociações, o festival finalmente se materializa na cidade, ocupando ruas e teatros. O que vocês esperam que o público sinta ao percorrer essa edição: uma celebração, uma provocação, um convite a se mover de outra forma?
Maitê Lacerda e Talita Rebizzi – A Bienal contém em si todo esse mapa de emoções que você menciona. Nosso desejo é que as pessoas possam experimentar a dança de diferentes maneiras, se aproximar de assuntos, refletir sobre o contexto social e político no qual estamos inseridos e celebrar. Poderíamos dizer que o desejo é que as pessoas vivam, considerando que viver é ser atravessada por uma série de sentimentos e sensações. Celebramos a dança como forma de resistir, movimentar o corpo e as estruturas. Corpos que possuem em si a possibilidade de se expressar, colocam-se insubmissos e percorrem a vida com maior encantamento. É nessa frequência que esperamos que os públicos encontrem a nossa programação.
Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.