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VER O O OUTRO: Bob Sousa entrevista Carolina Agrisani

Publicado em: 07/10/2025 |

Carolina Agrisani, por Bob Sousa

 

Pesquisadora, atriz e trabalhadora das artes, Carolina Angrisani tem construído uma sólida trajetória no campo do teatro documentário, com especial atenção às práticas cênicas que emergem das periferias urbanas. Doutoranda e Mestra pelo Instituto de Artes da UNESP, Carolina é também autora e coautora de obras que refletem sobre memória coletiva, intervenção urbana e experiências de criação colaborativa. Em parceria com o professor e pesquisador Alexandre Mate, lança agora o livro Impacto Agasias: 13 anos a trocar experiências nas artes de “sobreviser”, identitariamente — uma potente investigação sobre a trajetória do Impacto Agasias Grupo de Teatro, com sede em Heliópolis, que ao longo de mais de uma década vem tecendo arte, política e pertencimento comunitário.

A publicação, realizada com apoio da 42ª edição da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, tem distribuição gratuita e acesso online previsto. O livro celebra não só o registro de uma história coletiva, mas também a urgência de políticas públicas que sustentem a produção cultural periférica. Nesta entrevista, Carolina Angrisani compartilha os caminhos da pesquisa, as memórias construídas junto ao coletivo e a importância do teatro como prática viva de escuta, documentação e resistência.

Bob Sousa – O livro “Impacto Agasias” reúne reflexões críticas e registros sensíveis de uma história construída com e a partir da comunidade de Heliópolis. Como foi para você, enquanto pesquisadora e artista, vivenciar esse processo de escuta e tradução da memória coletiva do grupo?

Carolina Agrisani – Logo no início da pesquisa para a escrita do livro, durante o primeiro encontro que tivemos com o Grupo, o professor e pesquisador Alexandre Mate propôs que entrássemos em processo gestacional mnemônico. E esse foi um processo bastante desafiador, não só pela responsabilidade da escuta e tradução dessas memórias, como você mencionou, mas também porque eu tinha muitas recordações junto ao coletivo. Fui professora de teatro de parte dos integrantes, no período em que o Grupo foi fundado em 2011, acompanhei o florescimento dessa trajetória, e entre os anos de 2019 e 2022 desenvolvi uma pesquisa de teatro documentário junto ao Grupo em Heliópolis. Ocasião, em que pude conviver com a comunidade e dirigi o documentário cênico Cidade do Sol – uma homenagem à menina luz, que terá nova temporada em 2026 e trata de um feminicídio ocorrido em 1999, as lutas da comunidade e as transformações sociais, naquele que ficou conhecido como Bairro Educador. Então, precisei de um tempo mais amansado para conseguir acessar essas memórias com a vivacidade que originalmente as constituíam. Com os encontros, os cheiros, os sabores, os afetos, as cores, as texturas, a musicalidade, trocas, experiências, dúvidas e descobertas próprias dos processos criativos. Nesse sentido, esse acaba sendo um processo de escavação, que traz consigo as memórias dos fatos ocorridos, mas muitas subjetividades também. Foi muito interessante observar que durante esse processo de escrita, as lacunas deixadas pelas memórias de alguns integrantes, foram preenchidas pelas recordações dos outros, o que possibilitou encontrar na prática as teses mencionadas pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs, quanto àquilo que ainda se encontra vivo na consciência de um grupo. Quanto ao processo de documentação dessa memória coletiva, estávamos muito atentos, sobretudo, aos possíveis apagamentos. Tivemos um cuidado especial em registrar os nomes da artistada, sobretudo das mulheres, que passaram pelo Agasias desde sua origem e os trabalhos menos evidenciados ou que menos estavam documentados, pois esses corriam o maior risco de se perderem no esquecimento.

Bob Sousa – Em sua trajetória você tem se dedicado à prática do teatro documentário, tanto em publicações quanto na direção de obras como Cidade do Sol. Como essa linguagem se articula com os territórios e afetos que atravessam os grupos com os quais você colabora?

Carolina Agrisani – Tenho pesquisado teatro documentário de forma continuada desde 2013, inicialmente como atriz, realizando intervenções de caráter documental pela cidade de São Paulo e posteriormente na direção de experimentos cênicos, frutos de cursos e oficinas, e produções artísticas junto a diferentes coletividades. E em prosseguimento nos projetos de pesquisa desenvolvidos durante a especialização em Direção Teatral e nos cursos de mestrado e doutorado em Estética e Poéticas Cênicas, realizados no PPGA do Instituto de Artes da Unesp.

A pesquisa de teatro documentário, sobretudo seu caráter pedagógico, no sentido de ensinar a olhar de forma contra-hegemônica a história, a cidade e as pessoas que nela vivem, modificou o meu olhar, as minhas reflexões e os meus processos criativos como artista e docente. Então, passei a conduzir alguns processos artísticos e dirigir alguns documentários cênicos em itinerância em diferentes espaços da cidade, sempre de forma coletivo-colaborativa, o que possibilitou a partilha de alguns desses aprendizados. O fio condutor dessa pesquisa tem sido compreender o espaço (e suas relações conviviais, como sugere o geógrafo Milton Santos) como principal documento, no sentido de que é do espaço-documento que surgem as narrativas, histórias, memórias, apagamentos, silenciamentos, violências, acontecimentos…

O processo de documentação de um espaço, é também um processo de escavação da história e das memórias coletivas desse lugar, sobretudo dos apagamentos, o que pode trazer para os/as envolvidos/as uma sensação de conexão e pertencimento ao território, tanto para quem faz, como para quem assiste à obra resultante desse processo. Nesse sentido, ao passo que passamos a conhecer mais sobre a história de determinado espaço-bairro-cidade, passamos a tomar consciência da nossa própria história também.

Tendo em vista os inúmeros processos de apagamentos sociais, a linguagem documentária tem se mostrado de significativa contribuição nos processos de retificação e reparação, ao escutar e ampliar vozes que historicamente foram silenciadas e invisibilizadas. Dessa forma, tem sido possível desenvolver uma feitura própria de teatro documentário junto a cada uma dessas coletividades em consonância aos seus respectivos territórios.

Em outubro de 2025 dois livros sobre essa pesquisa, publicados pela Paco Editorial, estão sendo lançados. Poéticas da Memória Coletiva: uma práxis de teatro documentário e seus processos interventivos na cidade de São Paulo, que teve o prefácio escrito pelo Alexandre Mate e Poéticas da Memória: Teatro Documentário e Playback Theatre, algumas partilhas de experiências, escrito em coautoria com o meu companheiro de vida e de arte Fábio Araújo.

 

Bob Sousa – Diante dos constantes desmontes das políticas públicas culturais, especialmente nas periferias, como você enxerga a função de livros como esses — que documentam, provocam e afirmam — no fortalecimento da memória e da presença das artes nas bordas da cidade?

Carolina Agrisani – Esses livros vêm somar a outras inúmeras publicações de/sobre/para/com os coletivos teatrais do sujeito histórico teatro de grupo, fortalecendo esse movimento na cidade de São Paulo e para além dela. Coletivos como a Brava Companhia, Coletivo Dolores, Companhia Antropofágica, Grupo Refinaria Teatral, Grupo Sobrevento,  Cia. Teatro Documentário  e outros são citados nesses livros. Publicar um livro sobre a trajetória de um grupo de teatro, é documentar uma história que poderia ser esquecida. Nesse sentido, o professor e pesquisador Alexandre Mate tem realizado uma vasta e significativa contribuição para o registro e documentação das produções artísticas do nosso tempo, sobretudo as que se caracterizam como contra-hegemônicas, dedicando-se a publicações de textos e livros acerca do teatro de grupo.

No caso do Agasias, uma história escrita na periferia, no bairro de Heliópolis, localizado na região sudeste da cidade de São Paulo, em que existir já é por si só uma resistência e a luta é constante para “sobreviser”, como diz o neologismo que criamos coletivamente em nosso primeiro encontro de pesquisa junto ao Grupo. Então, essas publicações fazem coro junto a tantas outras e é uma ode às coletividades do teatro de grupo, à medida em que às inscreve na história e ratifica a importância da existência das políticas públicas para a cultura, porque sem elas é mais difícil existir e “sobreviser”, sobretudo, nas bordas da cidade. Esta está sendo a minha forma, nesse momento, de fortalecer e contribuir com o movimento de teatro de grupo na cidade de São Paulo.

 

Bob Sousa – Dois desses livros são frutos de uma parceria com o professor e pesquisador Alexandre Mate, referência nos estudos sobre teatro de grupo no Brasil. Como foi o processo de colaboração entre vocês — tanto no diálogo entre gerações quanto na construção conjunta dessa escrita sobre o Impacto Agasias?

Carolina Agrisani – Sou orientanda do professor e pesquisador Alexandre Mate desde o mestrado e agora no doutorado, então o nosso diálogo tem sido bastante afinado. Já havia acompanhado de perto o processo de escrita e participado da organização do livro de celebração aos vinte anos da Companhia de Teatro Heliópolis, Giras épico-poéticas nas obras quilombola, em processos de empoderamento – e não apenas – negro, da Companhia de Teatro Heliópolis: 20 anos de belezas e/em lutas e colaborado com alguns textos em outras publicações escritas e organizadas por ele. Poéticas da Memória Coletiva é fruto da dissertação de mestrado, orientada por ele.  Tem sido processos muito prazerosos e é sempre uma grande alegria poder encontrá-lo e aprender com ele. Tenho entendido o processo editorial como pedagógico, sobretudo quando realizado coletivamente, porque é junto que se faz uma publicação, então um aprende com o outro. E foi exatamente assim nesse processo com o Agasias, permeado por trocas significativas. O Alexandre Mate trazendo consigo toda sua bagagem de vida, experiência com teatro de grupo, pesquisas e escritas de livros e tudo mais que eu não daria conta de mencionar nessa escrita e eu trazia de certa maneira um pouco da minha trajetória de teatro de grupo, o convívio com o Agasias, com a comunidade de Heliópolis, a atuação no território, então essas coisas foram se somando e a partir daí esse livro foi sendo tecido em conjunto com o coletivo e de mãos dadas ao mestre.

Quanto ao diálogo entre gerações, tenho aprendido muito sobre o rigor nessa convivência com o Alexandre Mate, mas um rigor que se traduz em cuidado, que é algo que me parece imprescindível para o desenvolvimento de uma pesquisa ou um trabalho. E o cuidado em algum lugar também dialoga com o afeto que está presente nessa parceria.

Ao todo, foi um ano de trabalho, iniciamos a pesquisa em maio de 2024 e o lançamento do livro ocorreu em 28 de junho deste ano, incluindo reuniões e entrevistas com o Grupo, leitura de textos dramatúrgicos, escuta de composições musicais, verificação dos registros audiovisuais e registros documentais, incluindo programas, materiais de divulgação, apreciações críticas, relatos escritos e documentação da produção artística: ações, atividades, espetáculos, mostras e eventos promovidos pelo Grupo em sua sede. O processo de escrita contou ainda com uma visita à sede do coletivo, Casa Cultural Alcântara Sampaio, localizada em Heliópolis.

 

Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.