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Tempo sob Assédio: alegorias para um lugar no teatro – uma dramaturgia

Publicado em: 08/11/2021 |

Chá e Cadernos 100.67
Mauri Paroni

Neste início do pós-covid – que não acabou, tem muita água para rolar sob as pontes – vale a pena percorrer virtualmente certos procedimentos dramatúrgicos que empregava presencialmente. Utilizo a palavra “procedimentos” pela antipatia pessoal ao uso do termo “processo” quanto à criatividade. Atormentam-me lembranças da faculdade de direito: levava pau naquela matéria. “Processo” tem a ver com normas necessariamente respeitadas por legalidade, talvez até legitimidade. Dificilmente, a criatividade exerce bons eflúvios ali.
O teatro e o roteiro são lugares mentais que vivem do e no fluxo da existência humana em qualquer cultura e tempo.
Participar do Dramamix, o festival dramatúrgico das Satyrianas, concede-me o privilégio de trabalhar o teatro no ambiente híbrido on line que compôs o nosso último quotidiano. E de dividir o que se pesquisa. Perdão pelo o uso da ironia. Sem ela, não pode haver teatro.
Este é um brevíssimo resumo do resultado ficcional escrito fora da sede de ensaios virtuais e traz visões oníricas e individuais. Enuncio as passagens e algumas reflexões que não se pretendem um “método”, palavra que costuma remeter a receitas assassinas da criatividade, esta fundamental ao tempo em que estamos inseridos.

1.“Onde o tempo não para”: a escolha de um pretexto na união de dois textos originários unidos. Guardadas as devidas proporções de qualidade, distância e humildade, imito o procedimento criativo do cineasta nipônico Akira Kurosawa (1910-1998). Ele usou como pré-textos e fundiu dois contos do escritor japonês Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927): “Rashōmon” e “No bosque”. Com eles, venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1951 do cinema japonês à Europa, numa bem-vinda inversão do sentido eurocêntrico na arte do século xx.
Sendo “maria-vai-com-as-awas” contumaz e sem humildade(*), uni dois artigos da coluna chá e cadernos.


Ryūnosuke Akutagawa
Autor desconhecido – da National Diet Library

2. Estamos num lugar mental, por enquanto: o lugar físico da sala onde serão “lidos”. O que se lê é a ação principal do drama a ser “representado” (mas não uma narração) – uma mise en espace: mise-en-espace, colocação no espaço – bem diferente do termo “direção”, em francês, mise-en-scéne.
3. Aqui, o ator principal é, também, literalmente, a personagem principal: Arara Xestal, designado como “artista”, distribui pré-textos que ainda usam a escritura de gabinete como suporte. Segura, aos atores, os bilhetinhos que lerão; quase não fala, mas organiza a dramaturgia e os movimentos cênicos diante dos – e não para os – espectadores, presentes ou on line.
Por ser também on line, emprego um formalismo “vanguardista convencional”: um cineasta que tudo filma naquele lugar mental. Presença formalizada da transmissão on line, intuitiva, descrita como “louco”, deuteragonista, silenciosa, auxiliar de Arara Xestal. É também uma citação do princípio de combinar moção com emoção, tão caro na arte teatral japonesa, visto que temos a oportunidade de ter imagens enquadradas. Coisa que aprendeu quem conseguiu não se fossilizar durante a pandemia. Deixo a dica desta pequena digressão sobre Kurozawa:
https://www.youtube.com/watch?v=doaQC-S8de8.

Organizadas a dramaturgia e o espaço cênico onde jazem as demais personagens – para mim, pessoas designadas por seus próprios nomes –, viverão a cena portando seus próprios “corpos”. Para criar uma atmosfera surreal e crível, introduzi algumas personagens “reais”. Um exemplo emblemático é a presença do escritor J. P. Cuenca, aqui presumivelmente acometido de malária. Tomado pelo horror de estar exposto no palco, trava a sua fala logo no início, vítima de fortíssimos espasmos faciais e na mão direita, que segura uma caneta. Balbuciará fora de hora.
7. Situação semelhante ocorre com as falas e ações de Kenji, o habitual suicida japonês de ficções precedentes; condenado a vagar nelas por não conseguir realizar um suicídio supostamente “honroso”, pois morre de infarto no momento de se matar, ao contrário de seu conterrâneo e feliz suicida Ryonosuke Akutagawa.


Foto:
https://www.caoscultural.com.br/single-post/2017/12/05/a-arte-inovadora-de-akira-kurosawa

8. Tentarei introduzir palavras do autor Akutagawa. O procedimento de retificar falas será guiado pela relação artística que pudermos concretizar nos ensaios on line.
9. A mulher trans Brenda Oliver e a sábia caveira de Crânia atuarão como representação simbólica da morte; vestirão a máscara clássica da Commedia dell’Arte, chamada baūta – a única que tem o rosto inteiro, permitindo apenas uma glossolalia típica. Simbolizam também a dificuldade de expressão textual a que estão obrigadas, dado o preconceito de que são vítimas.
10. Tempo: A operação dramatúrgica transforma essa experiência formal numa experiência densíssima – o que não poderia deixar de acontecer por dispor de um máximo de 30 minutos para que tudo aconteça – a dialética do tempo real e do tempo narrado é sempre ótimo desafio dramatúrgico.
11. O lugar mental de ficção onde acontece a união dos dois pré-textos numa única escritura cênica é o manicômio. São todos loucos antes de serem eles mesmos, atores de uma representação convencionalmente presencial.
12. A ironia na descrição do lugar mental e na construção do clima e dos tempos de atuação legitima muitas sugestões iniciais do elenco em suas primeiríssimas impressões ao receber o pré-texto. Contatados on line, trouxeram inspirações e cores fundamentais; avalizaram trechos de Dostoievsky, Alexandre Dumas, Shakespeare e o ritualismo do candomblé, liturgia propiciatória de uma sacralidade perdida. Que eu, branco, não teria, estrutural e existencialmente como parte do procedimento criativo. Ou no emprego estrito do espaço virtual para escrever e projetar a direção da… mise-en-espace. Sou pessoa de fé budista. Isso quer dizer que habito a geleia geral da qual não se escapa no teatro contemporâneo.
13.O material privilegiado da narração fictícia se acumula nas ideias veiculadas pelas personagens postas nas bocas das duas atrizes suburbanas, do velho leproso embuçado e do romântico Alfredo. Porta-vozes de um decadentismo preconceituoso e romântico, utilizam-se desonestamente de uma luta social, transplantam-na a uma rivalidade de palco que enuncia desabridas contradições humanas dos seus dramas pessoais. Como suporte, temos a “leitura” via internet – ainda bem que a temos –, a salvar o principal instrumento de comunicação desta dramaturgia: humanidade. Em particular, o velho embuçado está designado para ter como intérprete um… embuçado – mesmo se for um alguém do elenco. Isso quer dizer que, além de se automartirizar fisicamente, o ator que aceitar interpretá-lo não terá nota de seu nome na ficha técnica. Esse é o pior martírio que lhe pode acontecer: a “nadificação” de seu nome e de seu rosto no palco.
14. “Rebus sic stantibus”(**), acredito isso seja adequado ao que tem sido chamado de teatro on line. Aqui está a sinopse do desenvolvimento da escritura cênica que “futuramente”, aconteceu: Tempo sob Assédio – Num falso manicômio e diante de uma câmera ocorre a leitura de autos existenciais sobre a nossa condição humana, assediada por variantes do tempo, lugar, afeto, moral e política. Um abalo sísmico que se procura dimensionar através da leitura teatral e imagética.
15. O resultado parcial escrito até agora segue abaixo – foi o que enviei ao elenco antes de trabalhar pessoalmente on line – para quem se interessasse pelo procedimento dramatúrgico, ou para compará-lo aos dois artigos/textos anteriores publicados nesta coluna.
O teatro de nosso tempo é o de sempre, mas está mais evidente a percepção de que esse “sempre” é muito mais extenso e abrangente do que nos acostumamos a ver. Em tempo: em grego, Theatron=de onde se vê.

(*) Ai, que trocadilho infame… tem mais um: ”ai” é ”amor”, em japonês.
(**) “Estando assim as coisas”, eh, latinista…


Foto de wikimedia commons: “Le scribe accroupi” (O escriba sentado,4ª ou 5ª dinastia, Saqqara (Egito), 2600 – 2350 a.C., em cálcareo, alabastro e pedra – exposto no Louvre – Arte Egípcia

 

TEMPO SOB ASSÉDIO

ALEGORIAS TEATRAIS
Mauri Paroni

DRAMMATIS PERSONAE
Brenda Oliver
O velho leproso embuçado – Velho ator embuçado
A primeira atriz de subúrbio – Karina Pimentel
A segunda atriz de subúrbio – Isabela Prado
Kenji, samurai decadente e suicida – Kenji Suguimoto
Alfredo, romântico decadente ex amante de Marguerite Gaultier, a transviada – Alfredo Attié
O jovem e louco cineasta que tudo filma – Pedro Urizzi
Arara Xestal – artista
J. P. Cuenca – escritor aterrorizado

PRIMEIRA PARTE
MONÓLOGO PAUSADO

Num manicômio judiciário, Alfredo posta-se diante do jovem e louco diretor de cinema e le os bilhetes que arara distribui. Este ajeita a todos os textos e posições. Todos “falam” para a câmara do louco, como que fixados em celulares.
No palco do manicômio entram Kenji, samurai decadente e suicida, Alfredo, romântico decadente ex amante de Marguerite Gaultier, a transviada (e’ a segunda atriz da segunda parte), o diretor jovem e louco que tudo filma, e arara, que alimenta a todos com bilhetes de suas falas, lidas para a câmara diante de um publico distante e vigiado pelo mesmo Arara.
Entra o escritor J. P. Cuenca:
Tenho medo da vingança do autor deste texto. Estou diante da morte por ser acometido de malária. Esta fala está horrível.
Tem espasmos.
Fui tomado pelo horror de estar exposto neste palco. Isto não é teatro. Ah! Aaaaah. Ahhhhh. Ah!
Trava a sua fala, interpretando horrorosamente fortíssimos espasmos dos seus músculos faciais. Tem espasmos na mão direita, segurando piedosamente uma caneta e tentando pedir esmolas com a mão esquerda.
Piedaaaa-deeee… aaa… aaa…aaa…Arar
Arara Xestal ministra um tranquilizante a J.P.Cuenca. Amordaça-o – assim fica até o final da leitura, compreendidos os aplausos, esquecido no fundo da cena e enxovalhado pelos atores. Seus colegas. Invejosos.
Arara segura um bilhete para Kenji, o suicida contumaz.
“Sou um homem ridículo. Agora me chamam de louco. Se eu fosse mesmo um louco para eles, se já não fosse apenas o ridículo de sempre, isso seria uma promoção. Mas agora já nem me zango, agora todos me são queridos, até quando riem de mim – aí é que são ainda mais queridos. Eu também riria, – não de mim mesmo, riria por essa coisa ridícula que é amá-los; mas não rio! Como rir se quando olho para eles fico triste? E muito triste! Triste porque eles não conhecem a verdade, e eu a conheço. Conheço a verdade! Ah, como é duro conhecer sozinho a verdade! Mas isso eles não vão entender. Não, nunca vão entender.”
Pausa.
Dostoievski. Tradução de Francisco de Araújo.
Arara:
Isso não era para ler.
Pausa. Kenji arma um despertador antigo, de alto tiquetaque. A segunda atriz de subúrbio, metida a Marguerite Gautier agrada a Alfredo constantemente como uma cortesã.
Alfredo, o romântico (lê tudo o que fala, ajudado fisicamente nas folhas por Arara, enquanto humilha a amante corrigindo lhe a postura de cortesā, expondo-lhe a parte superior das pernas.):
Amargo viúvo. Mais respeito. A de cujus ainda está viva.
Pausa.
Amarga. Assim é a vida. Amarga, mais que o teatro. Como ovo cozido, pão preto e carne crua.
Pausa.
É como descrever o lado mais amargo de uma vida.
Pausa.
É como a morte repentina de um amigo.
Pausa.
Mostarda e carne crua.
Pausa.
Não melhora. È.
Pausa.
É como perder a descendência sem te la educado… o mores… tempus non jucundo.
Pausa.
Latim é para poucos.
Pausa.
Ciranda não brinca. É vida de teatro pobre, anterior à logica industrial.
Pausa.
Evitei prole – pela vida errante a que se destina os da paixão.
Pausa.
Arara, o corrige severamente:
“Por Hécuba! O que é Hécuba para ele, ou ele para Hécuba, para chorar por ela? O que ele faria se tivesse o motivo e a deixa para a paixão que eu tenho? Afogaria o palco de lágrimas.”
Pausa.
Mas nada aprendeu quem ainda gosta decentemente do outro, do diverso de si.
Pausa.
Cultivou, por mais de uma vez, a prole de imbecis enfiadores de protuberâncias sedentas do que chamam de prazer, de consumo toxico feito para criar bucha de soldados traficantes.
Pausa.
Alfredo, o romântico:
Calculada e inconscientemente vou para o semiesquecimento.
Pausa.
Empurrado pela idade disfuncional.
Pausa.
Velhice.
Pausa.
Kenji, samurai decadente e suicida:
Quem mandou não sumir com o próprio corpo numa represa?
Pausa.
Feita para o dia em que não mais precisarem do que fiz conhecer.
Pausa.
Feita para afogar alguma fineza estética. Alguma coisa melhor que a frescura parisiense de sorriso irresistível, daquelas que encantam pela responsabilidade de não ser um vira-lata do faz e some.
Pausa.
Feita para ceifar a vida que se cansa do prazer fátuo.
Pausa.
Feita, enfim, para abrigo do distraído na vigência do ato de gerar a vida.
Pausa.
Coisa humana e infeliz para este errabundo.
Pausa.
Enviado à senilidade por não ter se suicidado, por não se ter morrido em canceres, cardiopatias, escleroses nervosas de sistemas centrais.
Pausa.
Ente simbólico. Real. Imaginário.
Pausa.
Limbo útil desconsiderado como saber.
Pausa.
Alfredo o romântico:
Jamais acadêmico – a ser deslembrado um dia depois de morto.
Pausa.
Viúvo solitário da não esposa. Sujeito sensível ao trágico que recusa o drama e o consumo.
Pausa.
Que sofre sem pranto.
Silêncio.
Kenji prepara o seu pinhal sagrado do seppuku. Lê:
Gente dessa súcia não deveria sobreviver.
Pausa.
Acreditei que fosse importante não morrer. Lutei desesperadamente para sobreviver ao a um corpo que queria morrer; morto, eu até seria conveniente. Hoje, não mais: virei um cara que fica, sem ser nada, nem viúvo, nem artista, nem nada.
Pausa.
Um problema.
Pausa.
Um nada de nada.
Pausa.
Eu me arrependo de não ter morrido.
Pausa.
Assim, continuo escrevendo para o além do abismo. Tipo figura triste de roqueiro que não morreu jovem.
Kenji dispara a campainha do despertador. Levanta o punhal para suicidar-se, mas , como de costume, tem um infarto, deixa cair o pinhal e morre do coração.
Pausa.
A segunda atriz de periferia, Marguerite Gaultier, a transviada:
Crânia morreu sem jamais ter existido. Surgiu uma lagrima, solitária.
Pausa.
Alfredo, o romântico:
Sofro horrivelmente.
Pausa.
Sofrimento pior que o do câncer.
Pausa.
Sofro horrivelmente. Teatro é assim. Sofro horrivelmente.
Arara:
For Hecuba! What’s Hecuba to him, or he to Hecuba, That he should weep for her? What would he do, Had he the motive and the cue for passion That I have? He would drown the stage with tears…”

FIM DA PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

AUTO CONTEMPORÂNEO REZADO POR BILHETINHOS NOS CONFINS DOS PALCOS

O mesmo auditório teatral de um manicômio judiciário. As mesmas personagens, acrescidas de um pequeno grupo teatral, ecumênico e leigo de oração composto de artistas trans, atrizes de subúrbio e um velho leproso embuçado está sentado no fundo da cena. Tomam um cafezinho. Arara picha sobre eles uma placa: DEGREDO PARA ARTISTAS DECADENTES

Arara continua a coordenar todos os movimentos e bilhetes. Aproveita a ocasião para humilhar a segunda atriz suburbana, com posturas de leque cortezão e estas palavras de Alexandre Dumas, “A Dama das Camélias”:
“Mon avis est qu’on ne peut créer des personnages que lorsque l’on a beaucoup étudié les hommes, comme on ne peut parler une langue qu’à la condition de l’avoir sérieusement apprise.N’ayant pas encore l’âge où l’on invente, je me contente de raconter. J’engage[-vous] donc le lecteur à être convaincu de la réalité de cette histoire, dont tous les personnages, à l’exception de l’héroïne, vivent encore.”
Cochicha seu ouvido durante a humilhação:
“Minha opinião é que você só pode criar personagens quando tiver estudado muito os homens, assim como só pode falar uma língua se a tiver aprendido seriamente. Como ainda não tenho idade suficiente para inventar, estou contente em contar. Portanto, exorto[-lhe] a ser convencido da realidade desta história, na qual todos os personagens, com exceção da heroína, ainda estão vivos”.
A primeira atriz suburbana entra no palco, acende uma vela, abre um bilhete:
Bilhete da finada Crânia…
A segunda atriz suburbana lê o bilhete:
Esquece-me por um dia que eu te abandono por uma semana.
A primeira atriz suburbana desconfia de trapaça por arte da segunda atriz, dobra o bilhete e abre um outro. Lê, com incredulidade:
Deste conforto tumbal percebo o marco deste momento: O inacreditável sempre acontece na obra de arte perde – a maior parte da sua aura perde-se no progresso tecnológico da vida comum; no palco, a luz elétrica mudou a ficção. A cenografia pintada morreu como ilusão para o fluxo da vida real.
Acende uma lâmpada e apaga a vela. Aponta uma lanterna para a perna da segunda atriz suburbana. Continua a ler.
A luz elétrica mata o teatro. Mata este bilhete. Mata esta revelação: ilumina o falso mito da celulite como padrão – discutível – de beleza da pele. Pele morta.
Pausa.
Ela faz tocar um concerto do Quinteto Armorial, “Entremeio para rabeca e percussão”. Fecha os olhos. Dança. Poe, em seguida, Nélson da rabeca. “Caranguejo Danado”. (https://www.youtube.com/watch?v=iUWz0ikpDwA )
Rabeca. Violão. Afeto. Arte.
Repete o entremeio e Nelson, enquanto volta a ler:
Um artesanato da pobreza honrada instintivamente desenvolvido em seus instrumentos. Os luthiers, os melhores, pretos, criaram sua imensa tradição no mundo. Ainda estão vivos.
Pausa.
Usam até computadores, mas – ainda – as melhores madeiras possíveis para os arcos são da floresta em extinção. Madeiras de corpos ressoantes.
Pausa.
Podem mais facilmente reproduzir melodias de alta qualidade instrumental. Tocam mais alto que os tambores que os acompanham ou solam.
Pausa.
Utilizam o “soul” de suas ancestralidades para isso.
Pausa.
Desapareceram os compositores, estamos condenados à baixa música, à baixa realidade, mas ainda temos os instrumentos.
Pausa.
Esperança.
Pausa.
Na fé cênica e na coragem de se superar as circunstâncias a que se está submisso, há o passo ida e volta afro-mediterrâneo.
Pausa.
Brenda levanta-se e traz, na bandeja, uma caveira e um candelabro a acender. Veste uma baūta (a máscara da Morte, na Commedia dell’Arte), roupa preta larga e luvas brancas. Lê outro bilhete:
A morte morreu
O teatro morreu
Deus morreu
A primeira atriz do subúrbio (falsamente estatutária qual realismo socialista soviético, voz metalizada, mas doce):
Nada de França.
Pausa.
Nada de fazer arte europeia na risca.
Pausa.
Arte vem de outro lugar. Arte é outra coisa. Arte liga as pessoas. Liga. Não è comunicaçãozinha de branco de Ipanema.
Pausa.
A comunicação do campo de extermínio atlântico acabou destruiu o teatro deles. Não que não houvesse extermínio nos tumbeiros do tráfico. Mas a dor era arte e vice-versa.
Pausa. Um leproso tosse romanticamente.
Fala, leproso.
O velho leproso embuçado se ajoelha (abre um bilhete e lê como uma ladainha):
… Que estava na origem das principais fortunas brasileiras/ no país com o maior número de escravizados da história / de onde até hoje / é impossível fugir / a nado / de barquinho / mas possível no quilombo / no terreiro / na graça da Liberdade / Liberdade do símbolo.
Pausa.
A segunda atriz suburbana abre um bilhete e tosse diante de seu amante Alfredo. Romantismo francês de baixíssimo quilate. Nada lê.
Pausa.
A primeira atriz suburbana abre outro bilhete. Lê:
A turma do teatro não perdeu o sentido do teatro. Perdeu somente a distribuição do sentido nas palavras e na escritura de palco, por sonora que fosse.
Pausa. Arranca o bilhete da primeira atriz suburbana e lê:
O marco foi a comunicação dos horrores dos campos de extermínio, filmados e projetados aos soldados da Wehrmacht e às populações adjacentes aos campos – feitas pelos soviéticos e outros aliados.
O velho leproso embuçado se auto fustiga. Saca um bilhete de seu paletó e lê, em forte lamento:
Sou culpado de adaptar dramas de Tchekhov / sem respeitar a coralidade / das presenças das personagens / aparentemente secundarias nos ambientes / eu, leproso velho / traí o sentido das discussões / mediante ofensas sub-reptícias / escondidas pela presença auxiliar / de estranhos aos conflitos pessoais / O publico deixa de se reconhecer nos palcos / Deixa de ir ao teatro / Que fica cada a dia mais caro e enfadonho / Sou culpado de traição ao teatro.
O velho leproso embuçado tira a sua camisa. Fustiga-se pesadamente. A segunda atriz suburbana pega outro bilhete e saca um punhal caído no chão. A primeira atriz suburbana o obriga a ler:
Campos que deveriam estar em Madagáscar / sonho inicial do Hitler / solução final / Hoje na mão de chineses, que compram e vendem / mais que europeus que colonialistas / na comunicação simbólica / cinematográfica / divisora de águas / da pandemia das lives.
Pausa.
O jovem e louco diretor de cinema lê outro bilhete, empunha a câmara e filma entusiasticamente:
Este é o sentido de denúncia intelectual que vejo nas lives, a manter a iconoclasta chama sacra do teatro – Que, ao morrer, não morre. Renasce. Este é o sentido. Quem lhe diz sou eu, um jovem cineasta morto.
Pausa.
A primeira atriz de subúrbio:
Falou difícil demais, velho! Nem no mundo acadêmico falam assim.
Aplica-lhe dois tabefes.
O velho leproso embuçado:
Obrigado.
Outra atriz aplica-lhe mais dois tabefes:
Diga que merece.
O Velho leproso embuçado:
Sou um leproso.
A primeira atriz de subúrbio:
Diga que merece mais degredo e mais tabefes!
O velho leproso embuçado:
Eu mereço mais degredo e tabefes.
A segunda atriz de subúrbio:
Ofereça a outra face.
Pausa.
O velho leproso embuçado:
E os meus tabefes?
Pausa.
Eu mereço degredo e tabefes.
Pausa.
E a meritocracia?
Pausa.
Sou um leproso.
A primeira atriz de suburbana (limpa as mãos com álcool):
Chega! Que nojo! Não tem mais tabefe.
A segunda atriz de subúrbio (com o punhal em mãos):
Venha, cineasta jovem e louco cineasta. Venha filmar. Aqui não é Oriente.
O cineasta filma o velho em primeiríssimo plano. Projeta-o na rotunda.
O velho leproso embuçado
Eu mereço mais degredo e mais tabefes.
Pausa.
Eu mereço mais degredo e mais tabefes.
Pausa.
Eu mereço mais degredo e mais tabefes.
Pausa. Ele se desespera.
Pano.

Mauri Paroni, outubro 2021