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Tempo de roteiro I

Publicado em: 14/04/2022 |

Chá e Cadernos 100.85
Mauri Paroni

Aprendizado da pandemia – emprego das plataformas para reuniões e aulas remotas – o curso de extensão cultural on line é incentivo à construção de roteiros e narrações pertencentes ao universo de quem dele participa. Seu material principal traz alteridades humanísticas, temporais e geográficas notáveis:

Uma artista indígena trabalha sobre a sua cultura, que indaga poder ou não realizar em contraste ou em relação com a escritura cênica convencional – coisa que já originou, por exemplo, o eixo estético dos desfiles das escolas de samba; um bombeiro dialoga no curso da prontidão de seu turno – qualquer emergência interromperia a arte com a realidade concreta da vida e os perigos de seu trabalho na cidade – o que alimentaria a narração, em forma e conteúdo; uma critica teatral escreve sobre um espetáculo de um Beckett reescrito no palco; uma escritora negra equipara-se ao quotidiano de sua mãe, professora na rede publica de ensino, que a aconselha a ler muito – ela o faz: reescreve tudo em folhetim televisivo de época; uma antropóloga anuncia ter-se renovado existencialmente seu ser escritora; um físico nuclear segue o curso de sua postação sob uma montanha na Itália central – do laboratório, no centro de uma gigantesca rocha; nos dois primeiros encontros o restante da turma silenciosamente engatinha uma atitude critica e construtiva de seus aprendizados. Essa audiência ainda não elaborou, justificadamente pelos apenas dois dias de atividade, um plano de experiências individuais.

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Por amor de evidência, relato as indicações que ditei a eles no terceiro dia – as outras indicações consequentes são individuais, não as poderia referir aqui:

“- Escolha três pessoas que você conhece (tenha proximidade ou não) para que elas sejam sua referência de quem leria, veria, escutaria sua história (a que você pretende narrar, não necessariamente uma história pessoal sua). Parta da questão: “O que ela/ele/elu me diria disso?”

– Reescreva a história do monstro e da menininha presente no filme Frankenstein, da Universal, de 1931, com Boris Karloff, colocando-se no lugar do monstro, da menininha. Só que, na cena, o personagem é você, com suas características físicas e comportamentais. Como seria essa história?

– Imagine-se contando a história do monstro e da menininha para as pessoas em um boteco, bar, na rua, no puteiro, no metrô, no seu trabalho, local onde faça um curso. Como você contaria essa história?

– Caso não queira escrever um roteiro, uma peça, que outro suporte você usaria? Escreveria uma carta? Faria um desenho? Uma pintura? Uma música? Narraria na forma de um surto psicótico, de uma fala durante uma bebedeira?”
[Indicações de Mauri Paroni – redigidas precisamente por Arara Xestal]

O inglês William Henry Pratt (1887 – 1969), nome artístico Boris Karloff, o “monstro” do filme Frankenstein, fotos em domínio público.

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Como condutor, não deixo de sentir um calafrio orgulhoso por ser parte de tal atividade, de tal projeto de escola; e do que isso possibilita, fruto da luta sem tréguas contra a dura realidade da pandemia, de nosso tempo e de forças reacionárias. Onde se tenta o retrocesso, a maioria progride, e a impressão de aumento da velocidade do tempo é mais intensa. Não se poderia sonhar isso dis anos atrás.

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Vem à mente parte do final da aula magna, em meio ao recebimento do Prêmio Nobel da Paz, que o resistente, ator, filosofo, diretor, escritor e goleiro franco argelino Albert Camus (1913-1960) proferiu na universidade de Uppsala, Suécia. Ele estava empenhado na reconstrução de um pensamento crítico quase extinto pelo nazismo, mas em plena guerra fria. Falava do século xx:

« Nous autres, écrivains du XXe siècle, ne serons plus jamais seuls. Nous devons savoir au contraire que nous ne pouvons nous évader de la misère commune, et que notre seule justification, s’il en est une, est de parler, dans la mesure de nos moyens, pour ceux que ne peuvent le faire. […]”

“Nós, escritores do século XX, nunca mais estaremos sós. Pelo contrário, devemos saber que não podemos escapar da miséria comum e que nossa única justificativa, se houver, é falar, na medida do possível, por aqueles que não o podem. […] “

Faz mais de 64 anos. Isso não muda. Será para sempre, como a pedra empurrada por Sísifo.

Albert Camus, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, leciona na Universidade de Uppsala em 1958. Arquivo da Universidade.