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Teatro Contemporâneo Pós 80

Publicado em: 02/10/2017 |

Para entender a produção dramatúrgica contemporânea do Brasil, a partir dos anos 80, torna-se necessário voltar os olhos para o marco-zero da modernidade do teatro nacional, com a montagem de “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, a que se seguiriam peças de uma safra importante de autores, como Jorge Andrade, Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Dias Gomes, João das Neves, Lauro César Muniz e Plínio Marcos. 

Nos conturbados anos 60 e 70, porém, parte dessa geração deixou a arena das discussões sociais e políticas, perseguida ou incomodada pela censura e a repressão, legada pelo Golpe de 64. Dois teatros, de resistência, encerrariam suas atividades por volta de 1972: o Oficina e o Arena. Mas seriam inspiradores para a formação de grupos experimentais.

À margem do teatro comercial, coletivos em São Paulo, Rio de Janeiro ou Porto Alegre, como Pod Minoga, Asdrúbal Trouxe o Trombone, Pessoal do Victor, Mambembe, Ornitorrinco, Pessoal do Despertar e Ó Nóis Aqui Traveiz, dariam expressão às criações coletivas, fazendo desaparecer a figura do autor. Bom exemplo disso é o exitoso “Trate-me Leão” (1977), do Asdrúbal Trouxe o Trombone, com dramaturgia criada coletivamente, por meio de improvisações, para tratar de temas como drogas, sexo e política.

Esses coletivos enfrentaram, com invejável energia militante, os duros anos da ditadura, legando aos anos 80 sua marca lúdica e bem humorada, com figuras exponenciais, que continuariam suas atividades em carreira-solo ou inseridas em novas formações.

São exemplos dessa continuidade Naum Alves de Souza (“No Natal a Gente Vem te Buscar” e “Aurora da Minha Vida”) e Flavio de Souza (“Fica Comigo Esta Noite”), saídos do Pod Minoga; Miguel Falabella (“As Sereias da Zona Sul”, em parceria com Vicente Pereira), do Pessoal do Despertar, e Carlos Alberto Soffredini (“Na Carrera do Divino”), do Pessoal do Victor, e do grupo Mambembe (“Vem Buscar-me que Ainda sou Teu”).

É preciso lembrar que, no final dos anos 60, também surgia um naipe de novos autores independentes e que fortaleceu a continuidade de uma dramaturgia autoral. Consuelo de Castro (“À Flor da Pele”), José Vicente (“O Assalto”), Isabel Câmara (“As Moças”), Leilah Assumpção (“Fala Baixo Senão eu Grito”) e Antônio Bivar (“O Cão Siamês”) eram, então, jovens estreantes, que gritavam seu inconformismo contra a ordem vigente (entenda-se, a ordem “burguesa”, arrastando grandes públicos ao teatro). As peças tinham evidente parentesco com a então atordoante “Zoo Story”, do jovem americano Edward Albee.

Logo, uma safra de autores atuantes nas décadas antecedentes entra aquecida nos anos 80, valendo-se da abertura política para tratar de temas até então proibidos ou levantando questões contemporâneas, como a violência urbana e as relações éticas e amorosas.

Mas, paradoxalmente ao clima de abertura política, alguns pesquisadores denominam o período como o da “ditadura do encenador”. Isso porque uma pequena constelação de aclamados encenadores, como Antunes Filho, Gerald Thomas, Ulysses Cruz, Marcio Aurélio, Gabriel Villela e Bia Lessa, entre outros, sobrepunham aos textos seus conceitos cênicos – fenômeno que, obviamente, não foi exclusividade do Brasil. Esses encenadores assinariam a autoria de textos, transpondo à cena obras literárias ou tragédias, ou, ainda, criando suas próprias partituras.

É importante, no entanto, frisar que a década foi muito mais fértil do que a força do teatro imagético.

Para efeito de comparação, enquanto fazia enorme sucesso a montagem de “Eletra Com Creta”, de Gerald Thomas, criação altamente visual, de 1987, ía à cena, no mesmo ano – com calorosa acolhida de público e crítica –, a peça “A Cerimônia do Adeus”, de Mauro Rasi, focada nos rituais da memória familiar. O espetáculo, juntamente com “A Estrela do Lar”(1989) e “Pérola” (1994), representavam uma guinada na carreira de Rasi, pai do chamado teatro besteirol, que se tornaria um dos principais fenômenos do riso na década de 80.

Luís Alberto de Abreu, um dos mais prolíficos autores brasileiros, também decolaria na década de 80, com antologias como “Foi Bom, Meu Bem” (80), “Cala a Boca Já Morreu” (81) e a premiadíssima “Bella Ciao” (82), esta última com direção de Roberto Vignatti. Em sua passagem pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT), de Antunes Filho, assinaria ainda “Rosa de Cabriúna” e “Xica da Silva”. Depois, iniciaria com o diretor Ednaldo Freire e a Fraternal Cia. De Artes e Malas-Artes, um repertório de comédias populares, com “O Parturião”, “O Anel de Magalão” e o mais recente “Auto da Paixão e da Alegria”, entre quase uma dezena de peças.

Outro dramaturgo de reconhecida importância é Alcides Nogueira, com a trilogia “Gertrude Stein”, “Alice Toklas” & “Pablo Picasso”a premiada “Ópera Joyce” e a mais recente “Pólvora e Poesia”, uma incursão ao universo da intertextualidade a partir de importantes obras literárias.

O riso é marca registrada de Marcos Caruso (“Trair e Coçar é só Começar”), Jandira Martini (“Sua Excelência, o Candidato”, escrita em parceria com Marcos Caruso), Juca de Oliveira (“Meno Male” e “Caixa 2”). Outros autores, em clave dramática, engrossariam a soma da produção dramatúrgica do período, como Fauzi Arap, José Antonio de Souza, Maria Adelaide Amaral, Naum Alves de Souza e Alcione Araújo.

Besteirol
O besteirol foi um fenômeno singular da contemporaneidade, herdando da comédia de costumes e do teatro de revista seus principais componentes. Nomes como Miguel Magno, Ricardo Almeida, Mauro Rasi, Vicente Pereira, Miguel Falabella e Hamilton Vaz Pereira consagraram o gênero.

O besteirol abrange peças como a paulista “Quem Tem Medo de Itália Fausta”, de Miguel Magno e Ricardo Almeida, e “As Mil e Uma Encarnações de Pompeu Loredo”, de Mauro Rasi e Vicente Pereira. Rasi seria um dos pais do gênero, com “Batalha de Arroz num Ringue para Dois”, e, em parceria com Vicente Pereira, “Doce Deleite” (contando ainda a colaboração de Alcione Araújo, em 81), “Falabella & Guilherme Karam Finalmente Juntos e Finalmente ao Vivo” (1984) e “5 x Comédia” (empreitada que reuniu Miguel Magno, Hamilton Vaz Pereira e Ricardo Almeida, em 1994), entre outras.

Miguel Falabella, outro forte expoente do gênero, escreveu seu primeiro besteirol em 83, com “Apenas Bons Amigos”, em parceria com Geraldo Carneiro, e marcou época com “Sereias da Zona Sul” (em parceria com Vicente Pereira) e “Louro, Alto, Solteiro, Procura”(em parceria com Maria Carmem Barbosa), entre outros sucessos. Registre-se na mesma década “A Bofetada”, da Cia. Baiana de Patifaria, um dos maiores sucessos do gênero, e “O Alto-Falante”, do carioca Pedro Cardoso.

O teatro besteirol apoiava-se no virtuosismo dos atores, geralmente atuando em duplas – no formato de esquetes –, que exigiam grande vocação ao improviso e comunicação direta com a plateia. Dava-se preferência a paródias da vida brasileira, com deboche, muita malícia e nonsense. O gênero começa a se esgotar somente em meados da década de 1990, período que é fortalecido pelo retorno da dramaturgia “séria”, bem como da produção do velho e bom teatro de grupo.

Anos 90
O teatro de texto ganha novo impulso nos anos 90. A democratização plena do Estado brasileiro convida novos e velhos autores a pensar questões cruciais, nos planos econômico, social e cultural. Com a falta de peças inéditas que dessem conta de abarcar novos e urgentes conteúdos, nota-se uma revalorização dos clássicos, como Nelson Rodrigues e Jorge Andrade, este último revigorado pelo grupo Tapa, dirigido por Eduardo Tolentino.

Há uma revalorização da dramaturgia estrangeira contemporânea, comungando um olhar atento à produção europeia, americana, irlandesa e canadense.

Paralelamente, surgem os teatros de grupo, produzindo dramaturgia própria e em clave atualizada, se comparada aos coletivos dos anos 70. Uma das mais importantes formações é o Teatro da Vertigem, capitaneado pelo diretor Antonio Araújo. Sua trilogia bíblica, formada por “Paraíso Perdido”(1992), “O Livro de Jó” (1995) e “Apocalipse 1,11” (2000), é o principal fenômeno da década de 1990, desenvolvida no registro do chamado “processo colaborativo”, com Sérgio de Carvalho, Luís Alberto de Abreu e Fernando Bonassi, respectivamente.

Segundo Antonio Araújo, o processo colaborativo “é a expressão do diálogo artístico, num jogo de complementaridade”. Apesar desse diálogo se estabelecer entre todas as instâncias criativas, há grande ênfase no ator, que deve se desdobrar entre “autor e performer”.

Esse tipo de processo guiou vários outros grupos, como a Cia. Dos Atores, do Rio de Janeiro, dirigida por Enrique Diaz. Da desconstrução textual exercida por toda a equipe nos ensaios, nasceram os elogiadíssimos “Melodrama” (1994) e “Ensaio.Hamlet” (2004). Também a Companhia do Latão, dirigida por Sérgio de Carvalho, e de cunho mais declaradamente político, brechtiano, costuma valer-se desse modo de produção dramatúrgica.

À parte o fenômeno do processo autoral colaborativo, uma nova geração de autores independentes firma-se nos anos 90. Dionísio Neto (“Perpétua”), Samir Yazbek (“O Fingidor”), Gero Camilo (“Aldeotas”) e Fernando Bonassi (“A Última Lasanha”) são expressões da década. O carioca Pedro Brício e o paraibano Marcos Barbosa são nomes de destaque nesse novo panorama.

O mais importante deles é Mário Bortolotto, pela fertilidade criativa, a “obsessão” temática e a formação de plateias expressivas. Focando sobre o homem marginalizado, desesperançado ao modo bukowskiano e de Plínio Marcos, mas sob uma estética de histórias em quadrinhos, moldada em total coloquialidade, Bortolotto deu grande impulso ao surgimento de uma nova geração de dramaturgos. “Medusa de Ray-Ban”, “Nossa Vida não Vale um Chevrolet”, “Postcards de Atacama” e “Hotel Lancaster” são algumas peças do vasto repertório do dramaturgo.

 

Convivendo com os velhos e novos autores, os diretores mais importantes do País continuam assinando suas adaptações. O despertar do século 21 conhece a esplendorosa sequência de montagens de “Os Sertões”, de Euclydes da Cunha, assinada por Zé Celso, do Teatro Oficina (que permaneceu fechado de 1974 a 1979), e Antunes Filho leva à cena, finalmente, sua versão de “A Pedra do Reino”, baseada no romance de Ariano Suassuna. O gosto pela diversidade valoriza o espaço da dramaturgia performática – com sua maior representante, Denise Stoklos; do teatro homoerótico de Newton Moreno; do teatro-circo, bem representado pelos Parlapatões, e da comédia ao gosto do besteirol, que se perpetua no “Terça Insana”, projeto paulista que se transformou num dos grandes sucessos de público dos últimos anos, reafirmando a grande vocação das plateias brasileiras ao riso.