EN | ES

Solidão no Chá

Publicado em: 01/09/2025 |

Mauri Paroni – especial para a SP Escola de Teatro

E Cadernos… chama se assim mais pela recordação de certos cadernos que tinha na escola; caderno de Geografia, de Literatura, de Dante Alighieri, de História. Também os há, semelhantes, na atual SP Escola de Teatro, na biblioteca da sede Brás, nas mesmíssimas salas onde minha mãe formou se em 52, na então Escola Normal Padre Anchieta. Namorou e casou-se. Era do Bras.

Ali despedi me dela: Na janela da biblioteca, enquanto lembrava-se de ser admoestada por seu professor de latim. Ela estava com linfoma, tratava, o mesmo tumor que curei em 2005. Outros tempos – felizmente hoje melhores. Mas essas são profundas ligações, de uma solidão frequentada pela memória, pelo lugar, pelo teatro, pela dança, pelos livros, por santos que me cobram escrever. A alguns deles.

Simone Weil falava que plantar é aceitar a demora. Nietzsche, “(E) aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não conseguiam ouvir a música.” Gaston Bachelard dizia que a casa é nosso canto no mundo – não tem um “canto preferido” no sentido de um local físico, mas sim um interesse por “cantos” de intimidade e imaginação que são essenciais para o devaneio, como o quarto ou o lar. “Cantos” para a criação de imagens do silencio entre o mundo exterior e o universo interior de alguém. Silencio muito preciso. Mais que palavra sonora. Exemplo: a Musica traz a pausa a escrever o silêncio. Cria ritmo e significado. No palco, atores podem e devem ir além do que chamam subtexto. deve e pode ser dançado. Tem contexto, tem pretexto. E’ linguagem precisa. Cria. Performa. Narra. Pare. Mata. Existe. É vela. Melhor, é luz de uma vela. É La flamme d’une chandelle (A chama de uma vela – 1961).

Neste momento, invade-me a lembrança do Sindicato dos Bancários quando assisti o potyonkin pela primeira vez. A escadaria, o carrinho de bebe, as rodinhas. a minha cadeira de rodas, 45 anos depois. estávamos cercados estávamos pela polícia – o filme de Eisenstein era proibido. Exibição proibida. Este é o Potyomkin (Броненосец Потёмкин: O Encouraçado Potemkin filme mudo, mudo dirigido por Serguei Eisenstein e lançado em 1925. Ele apresenta uma versão dramatizada de uma rebelião ocorrida em 1905, onde os tripulantes do navio de guerra Potemkin se insurgem contra os seus oficiais superiores. Um devaneio no devaneio. Uma defesa – qual fuga da realidade vivida – ato poético da consciência imaginante criativa e – poesia não como os cada vez mais enfadonhos discursos sobre o mundo propinados nos palcos empobrecidos de linguagem – mas como ATO no mundo, pensamento em ação. Devaneio do tipo que faz me caminhar por lembranças poderosas como frases de efeito do nosso gênio do misticismo urbano brasileiro nasce o famosíssimo : “a pior forma de solidão é a companhia de um paulista”, encontrado na crônica “o paulista”, publicada em 7 de agosto de 1968.E daqui permitam-me repartir do diretor e roteirista Luis Buñuel e seus devaneios, causa de todos os seus filmes, sobretudo os últimos, aqueles quando de seu retorno em França co roteirizados com Jean-Claude Carrière.

Ah, recordo devaneios e sonhos desses surrealistas quase contemporâneos – eu tinha 16 anos quando o vi no cine Bijou, o da praça Roosevelt… Tive a sorte de compartilhar alguns dias como formador na Paolo Grassi quando Carrière lá estava em conferência.

Ele sempre repetia ser fundamental que gente diga falas, antes de aventurar qualquer abstração, ainda que legitima. São força criativa e libertadora que, através d a poesia, cria consciência e conhecimento das imagens e vivências no mundo.

Bachelard talvez intua o devaneio como forma de fuga da realidade, mas também como um caminho para a tomada de consciência acima de um discurso sobre o mundo passível em nossas elucubrações.; antes: vejo eu, humildemente, a coisa transferida ao palco, ao cinema, no ritual da arte, é, mas sim um ato dentro dele. – um ato de pensamento em ação, gesto no mundo, a força disso nasce de um atrito, sempre dele, com a imaginação, linguagem desvinculada do nosso exterior e ancorada nas profundezas do que podemos chamar, ainda que imprecisamente, de alma, de um sopro imaterial, mesmo que movido por nossa respiração.

É muito bom lembrar que a ritualidade afro-brasileira nos oferece “dna” de mística originaria americana – de nosso continente, ressalto – aliada ao que Bachelard explora a infância representada no plano do imaginário – Buñuel, no sonho e no devaneio Camus no absurdo – Rodrigues nas suas crônicas místico-urbanas.

Fontes: Bachelard, Eisenstein, Simone Weil, Alberto Filipe Araújo, Nelson Rodrigues, Nietzsche.