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Sobre “Entre o Nada e o Infinito”, de Ivam Cabral org. Marcio Aquiles – Giostri Editora

Publicado em: 26/03/2024 |

Mauri Paroni
Cha e Cadernos 200.14

 

A proximidade que tenho com o autor afasta-me da impossível “isenção” de qualquer minha análise ou opinião, mesmo uma simples resenha. Vou me limitar a elencar trechos que ilustram a tal proximidade, seguidos de comentários de
parte:

1.
[ Grafiteiro dos palcos – 23 de maio de 2013
Pensando que quero fazer teatro sempre como um grafiteiro da periferia faz sua arte: sair por aí pintando as paredes cinzentas, colorindo a cidade e os sentidos dos cidadãos adormecidos. Pintar por aí, em paredes e muros aleatórios espalhados pela cidade, sem pensar nas galerias de arte e em jogos de poder, só com a polícia para me preocupar… pelo
simples prazer de me expressar e ver minha expressão tocar os outros. Quero continuar a ser um grafiteiro dos palcos. ]

Sem alarde literário, natural como uma reparação cênica, na página ducentésima décima nona do livro – são setecentas – este parágrafo resume, como nenhum outro, o espírito de seu autor. Urbanidade desconstruída para haver convívio na… urbe.

“Entre o Nada e o Infinito”, pela extensão de seu conteúdo, precisaria de mais que esta resenha mínima. Isso, se somente nos abstivéssemos daquelas tantas páginas. E linhas. Se abordarmos as entrelinhas, a coisa fica difícil de ser narrada, dada a natureza real das experiências concretas ali contidas. O livro é uma singular autobiografia artística em progressão diária das transformações e conservações das décadas 1980 até esta presente; em viagens e peregrinações em pelo menos dois continentes culturais e físicos: percurso brasileiro e pelo mundo, desgramatizaado na desurbanidade paulistana. Não é pouco, é um exílio , como o é a viagem de quem faz a atividade não industrial como a teatral. O cinema, por exemplo, pode cair facilmente na indústria. O teatro, não, por ter na quintessência a relação social mais afetiva que produtiva. A cotidianidade exigida pelo teatro é a mesma exigida pelo casamento inventado numa ligação de lógica antiprodutiva. Diária. E isso é a marca do livro, que segue a lógica não produtiva – segue a existência de seu autor – sem muitos disfarces. Nele está um Ivam Cabral que avista sargaços e deles desvia em amor ao teatro e à existência na direção dos mundos de amizade, infinitos. Gente de teatro é, justificadamente, atraída pela natureza do protagonismo dessa própria atividade. Paralelamente, os capítulos descrevem a  trajetória da sofrida condivisão de lutas e conquistas de espaços urbanos e cênicos ao mesmo tempo. Muita, mas muita gente de teatro, em meio deserto de nosso tempo, cruzou com Ivam nas esquinas da nossa profissão; e sobreviveu graças a ele, ao Espaço dos Satyros. Pensei que isso tivesse acontecido somente comigo. A leitura desse livro corrigiu essa impressão:”Entre o Infinito e o Nada” faz intuir que isso aconteceu amplamente, em todas as esquinas em que navegou, atribuindo pilotagens nas varias naus das suas travessias bem além do palco. O livro narra uma linha de sobrevivência de corpos.

Talvez justamente por isso, o livro aborda a complexidade de fazer teatro nos últimos anos. Para tal, descreve também a ambição projetar de seu trabalho pedagógico. Faz intuir o que não está dito sobre a liberdade dos palcos e as vicissitudes daquelas tribunas, afirmando o custo pessoal dos corpos que ali navegam. Embora possa fazê-lo, jamais cede à tentação de condicioná-los às confissões públicas de seus escritos. Estes valorizaram vidas em infinitos encontros. E a coisa continua depois da leitura. Enfim, todas as análises, descrições, convicções e decorrentes argumentos estão em sintonia crítica com a sua atividade quotidiana. Não houve nenhuma ocasião sequer que eu tenha experimentado o inverso, numa escrita que totaliza 700 páginas. Estampo dois exemplos, das centenas presentes no livro, não por isso desimportantes.

2.
[Educação do olhar 12 de dezembro de 2015
Foi um texto do Rubem Alves intitulado “Educação do Olhar”, publicado em alguma edição da revista “Pais & Filhos”, há anos, que me fez pensar sobre o tema. Segundo Alves, “e educar é mostrar a vida a quem ainda não a viu”. Importante: a vida, não um olhar (nem uma opinião) sobre ela. No artigo, o educador, também, vai nos apontar dois tipos de educação: das habilidades e das sensibilidades. No primeiro modelo, uma maneira de criar conhecimentos para a sobrevivência; no segundo, no terreno das sensibilidades, a sobrevivência será desvendada pela razão de viver. Se, por um lado, no campo da educação, cada vez mais somos obrigados a estruturar mecanismos que nos coloquem numa via vertical, numa espécie de produção em série (graduação, especialização, pós-graduação etc.), por outro nos falta o espaço para as descobertas que nos revelem o deslumbramento, o assombro. Afinal, o que seria dos nossos olhos sem os encantamentos da vida? Em geral, absorvemos o conhecimento apenas pela via das habilidades. Damos um duro danado para nos especializarmos, buscando perfeição e técnicas apuradas, correndo atrás de instrumentos que nos aproximem da magistralidade. Cheguei a um momento em que me faltam as maravilhas do banal. Preciso desaprender, seja lá o que isso signifique. Por um sistema modular e sistêmico 14 de dezembro de 2015 A Finlândia anunciou nos últimos dias a abolição da divisão do conteúdo em matérias em seu sistema escolar. A revista “Veja” trouxe uma matéria interessantíssima a esse respeito, em sua última edição, intitulada “Voando para o Futuro”. Uma reflexão que pode/deve inspirar a revisão da estrutura pedagógica em nosso país. ]

(…) Isso só na página 338. E vai nesse ritmo. Setecentas páginas de diário de um “animal de palco” (como chamamos
gente assim), de como pode vir a ser a vida no teatro que segue o quotidiano das pessoas comuns. Sob pena de teatro
não ser, mas apenas uma ensaística de palco, algo ideal, não concreto, desprovido de matéria; como muito, sendo mais da metade do que se encontra nos teatros. Ritmo feito do material existencial de uma pessoa que vive o teatro e a vida de qualquer pessoa que lhe cruze o caminho, imprime o ato da leitura desse livro. Provoca a infinitude teatral que nos coloca no limite do autor, do Ivam, do seu nada. Longe daquele nada sartreano, mais próximo do nada estimulador de revolta descrito por Albert Camus.

Tem outra coisa nesse diário: Quem o lê pode ir saltuariamente pelos tópicos e datas. Pode ter o entendimento que conseguir. Por inevitável projeção, é muito parecido com a experiência pedagógica da SP Escola de Teatro, por ele sonhada, desejada e realizada. Modular. A leitura deixa evidente a atividade pessoal de Ivam nessa jornada que se realiza e não deve estancar se, pois afirma o teatro como progresso político, social e existencial. Ressalto dois dos muitos pontos dessa aventura responsável de ensino cultural, enunciados nas país.

Aqui, quando se salta o tempo cronológico não se quer dizer que se o cancela. Ao contrário. Sou um apaixonado pelo
estudo da história do teatro, ocidental e não – escrevo muito sobre ela, além de ter ministrado grande número de cursos de história do teatro, da dramaturgia, de dramatrurgismo, de história geral. Na SP viraram e viram automática e
informalmente um módulo, ainda e sobretudo por serem extracurriculares, por serem extensivos culturalmente, por serem complementares. Essa química, que é uma química do autor, fica evidente nesse livro. Está exposta, está transparente. Esse é o recado de minha, chamemos assim, mínima resenha pessoal.