E A MULHER DE LÓ OLHOU PARA TRÁS… – SERGIO ZLOTNIC
Comentário sobre o livro “A ESTÁTUA DE SAL DE SODOMA”, de ALBERTO GUZIK
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Um texto escrito é a voz de uma pessoa ausente, diz Freud.
É assim que escutamos a voz inteira de Alberto Guzik, em sua melhor versão, no livro póstumo “A estátua de sal de Sodoma”, recém-lançado pelo Selo Lucias [ em parceria com editora URUTAU – fev 24], na SP Escola de Teatro, Sede Roosevelt. Ali, assistimos Alberto ressuscitado, dando o ar da Graça, em sua obra de maior qualidade. O livro nos oferece uma antevisão daquilo que o autor ainda teria escrito, nos catorze anos que nos separam de seu fim.
+ Leia “A estátua de sal de Sodoma”
A leitura é uma imersão no universo das artes cênicas –, área na qual evidentemente Guzik desliza de braçada.
Sob o impacto da leitura, registro impressões vagas [imprecisas] da experiência. Senão, vejamos.
Como em seu romance anterior [“Risco de Vida”, Editora Globo, 1995], há marcas de uma época também em “A estátua de sal de Sodoma”: a escrita de Guzik desenha geografias. São lugares da cidade e músicas e cardápios, elementos da arquitetura do texto. Embora relativamente recente, o livro traz preliminares da linguagem digital, com alguns apetrechos que inclusive caíram em desuso pouco depois [i-Pod hoje é talvez um gramofone!], fato que marca também certa arqueologia de um tempo [e eu nem sabia que ele fosse tão hightech – pensei que escrevesse numa Hamilton…].
Alguns diálogos, notáveis, bem construídos, adjetivos de pontaria e precisão, trilha sonora pra ninguém botar defeito. Literatura com sonoplastia e iluminação [cheia de luz, a casa na Vila Madalena…]. A estratégia de misturar primeira e terceira pessoa funciona – e remete à questão da alteridade. Explico.
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Diferentemente do que se passa no livro “Risco de Vida”, em “Estátua de Sal…” as porções biográficas se atenuam: o protagonista é diverso do autor. E, ao mesmo tempo, paradoxo, tão ele mesmo [Guzik]. Alteridades.
O desafio do escritor é figurar o não-eu, o outro, quadro de esboço [quase] impossível. Escrever é uma operação de transição – tentativa de tocar heterogeneidades, tocar o diferente de si.
[quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém, diz o poeta]
Se toda obra é [sempre] autobiográfica – sobretudo nos tempos que correm -, o salto épico ocorre quando, ainda apoiado nas próprias marcas da história pessoal, o artista logra dar forma a um Outro.
Ao assim proceder, o escritor está também nomeando a si mesmo -, mas não sabe disso [é importante que não saiba]. A obra de valor nasce despretensiosa, parida na distração. O artista acerta ‘sem querer’, ali onde não percebe… –, sua bússola é um ponto cego.
Pra isto, talvez, o escritor tenha de se despir de camadas familiares que o recobrem – e abrir-se poroso a brumas estrangeiras. ‘Uma pitada de estranho’, é a recomendação. Perigo!
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A propósito da polaridade estranho/familiar. Uma vez publicado, “A estátua de sal de Sodoma” recebe o olhar mais crítico de Fanny, irmã de Guzik. Ela leu e gostou [devorou o livro em dois dias] – porém – com [muita muita muita] parcimônia. Ressalvas e cautelas. Senões. Poréns.
Mas esse fato não deveria espantar. Procedimento delicado, o de ler o produto da pessoa que amamos. Não há nenhum pilar de fundação que segure a objetividade. Neutralidade impossível.
Do leque que vai da paixão à indiferença, onde pousar? Como avaliar com clareza? Como apreciar ‘a obra’ em sua singularidade, sem permitir que afetos poluam o campo?
As mulheres da família de Guzik [as Maikovski, nascidas na Rússia], parecem que olham pra trás – tal como a esposa de Ló – e, admirável, não são transformadas em estátua de sal. Elas veem o que não deveriam. O proibido. E então qualquer escorregadela nas produções [dos filhos e netos e irmãos e irmãs] é detectada. Nada escapa àquela percepção mordaz que perscruta, visão de raio x. Na gramática familiar, não se perdoa nenhuma mácula. Têm horror – elas, as matriarcas – de serem parciais e, de repente, por terrível acidente [oh, catástrofe!], enaltecerem a obra da prole. Ser fiel à Verdade é ética e princípio moral.
Nesse léxico, NÃO! é a palavra de ordem [dita com sotaque].
Amortecedores familiares… Produzir perto desses Totens é exaustivo e frustrante – porque nunca nada é nem será bom o suficiente.
A oposição familiar permanente é paredão contra o qual Alberto desde sempre se insurgiu. Até que, num golpe de mestre, pudesse usar o obstáculo como ponto de apoio [pista de decolagem].
[essa estratégia de Alberto está descrita no tributo de 2010]
Contudo, importante: a expressão de amor imenso – contida na demanda por excelência – é sutil e não evidente. De pronto, parece desamor. Não é. Pelo contrário. Primeira e última lição.
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Ao final do livro, a cena que vemos é a de um artista que se lança adiante – alguém que se ressuscita e se joga longe. Guzik toca regiões nunca alcançadas por ele, numa obra maior, espécie de auto réquiem.
E aí, depois de tanto tempo passado, quase dá a impressão de que Guzik pressentisse o destino: surpreendente que tivesse um livro, pronto e acabado, de tamanha qualidade [acionando Ivam Cabral e Aimar Labaki, just in case…].
E os acontecimentos futuros, posteriores a 2010, ano de sua morte [acontecimentos ignorados por ele – mas não por nós, que sobrevivemos], catapultam sua voz, que se levanta alto, num último voo, Maiúsculo.
[a voz é Dele: eu O escuto falando trechos inteiros e parágrafos do livro, com a sua voz de veludo…]
Por fim, penso que “A estátua de Sal de Sodoma” é eco de “Risco de Vida”. Repetição superior ao original, tema, aliás, que o livro discute.
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POST SCRIPTUM – Há nove anos, em 2015, foi publicado um conto curto em que abordo o matriarcado familiar. Chama-se “Mulheres de Ló”. Mal sabia eu que, naquele momento, “A estátua de sal de Sodoma” estava no prelo já havia pelo menos cinco anos…
O conto termina com a frase de duplo sentido: “Sofremos de verdade lá em casa. Deus nos ajude!”.
Sob este prisma, então, a mensagem amorosa de Fanny para Alberto talvez seja assim: “Se eu me desse por satisfeita com seu livro, significaria que não espero que você seja capaz de mais do que isto”.
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Mas essa sabedoria, afinal, não é tão estrangeira às artes cênicas. Para o artista do teatro, ‘nunca estar pronto’ e ‘jamais estar satisfeito’ [com as próprias produções] são a posição que vigora há milênios… [posição que impregna o campo de fertilidade].