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Quarta parede?!

Publicado em: 02/10/2017 |

I – O jogo do teatro exige a suspensão da descrença, como se sabe. Se o espectador não se entrega à brincadeira, por melhor que seja o espetáculo, o mecanismo não se dá, o deus não desce do Olimpo. Para não colocar em risco esse sonho sagrado, desrespeitar a quarta parede foi tabu. No teatro ocidental, essa película imaginária, depois de convencionada, ficou ali estacionada entre palco e plateia, intacta, e assim funcionou por séculos. Até que alguém se atreveu a atravessá-la. E – surpreendentemente – a magia se manteve. Dificilmente hoje, em especial no teatro experimental, em que há trabalho de pesquisa, assiste-se a algum espetáculo em que, em algum momento, a separação elenco/espectador não é problematizada. Há até um convite, muitas vezes, para que o público interfira nos destinos da trama; trama que então depende que ele (espectador) também a escreva. Desenhou-se um teatro menos pronto, mais sujeito ao acaso, às contingências, à sorte, ao erro. Um teatro menos seguro e ainda mais na eminência de tombos. Precário no equilíbrio, mais artesanal, cozido na hora, apto a desandar e a desmoronar…

E, mesmo assim, mesmo com os sucessivos atravessamentos de fronteiras, ao invés do colapso, pelo contrário, obtém-se muitas vezes um espectador mais implicado e mais crente na verdade do jogo. Um espectador cujo olhar alimenta ainda mais as artes do palco, e é por elas alimentado…

Essas investigações não são novas – e poderão chegar a um esgotamento. Até que alguém atrevido ouse romper algum outro tabu ainda invisível para nós.

Mas talvez valha a pena evocar esse tempo em que um experimento que rompesse a quarta parede era impensável, por colocar em xeque uma ilusão essencial ao teatro. Tempo em que, se um ator subitamente acrescentasse uma voz estrangeira a do personagem, por exemplo, atravessando o limite imaginário estabelecido, dirigindo-se de repente a um espectador da plateia, o público jamais poderia refazer a sua fé no espetáculo. Tudo estava perdido!

Tempo em que romper as fronteiras sagradas e ainda esperar que vigorasse a suspensão da descrença era exigir demais das divindades das artes cênicas!

Vale a pena evocar esse tempo para conferir quanta coisa mudou, de lá pra cá. Habituamo-nos a muitas transgressões, de maneira que quebras de paradigmas tornaram-se banais para nós.

II – É pertinente aqui um ligeiro link com a clínica freudiana. Nos processos de análise, prevalece a preferência de que o paciente não tenha muitas informações a respeito do analista, de sua vida privada, de seu mundo individual. Essa assepsia tem uma razão de ser – muito embora cada analista seja tão discreto quanto lhe permite a sua natureza pessoal.

Ao não ter informações a respeito do analista, o paciente é livre para fantasiar. Se meu analista tem filhos e uma esposa em casa, por exemplo, e eu não sei disso, sinto-me livre para imaginá-lo casado comigo, construindo uma vida de amor a dois! Realizo o desejo de intimidade que eu quiser!

Dessa maneira, o analista se conduz com economia. Silencioso e neutro. Reservado, deixa o paciente ser protagonista e preencher o espaço com seus conteúdos. Retirando – através do discurso – estórias do mundo do paciente; e não acrescentando nada de estrangeiro ali! Pela via de levare, e não pela via de porre! O analista teria, assim, uma espécie de horror ao seu próprio ato. Sua passagem está interditada! É proibido de atravessar a quarta parede!

Ocorre que hoje as coisas não são mais assim – ou, para muitas analistas, não são mais tão assim! A experiência demonstra que, mesmo quando acidentalmente um paciente obtém informações a respeito do mundo pessoal de seu analista, através de terceiros, por exemplo, ou através dos mecanismos tecnológicos virtuais dos dias que correm (que devassam a vida das pessoas, embaralhando a polaridade público/privado…), esse paciente – mesmo assim, mesmo de posse de informações “proibidas”, que obturariam os espaços vazios e a possibilidade da fantasia – sente-se suficientemente livre para imaginar ao sabor de seus desejos, “esquecendo-se” dos dados de realidade aos quais teve acesso. Desconsiderando e ignorando, assim, as “verdades inconvenientes” encontradas. A fantasia revelou ainda maior força, ao opor-se a algum fato indesejado descoberto. Pois “onde a realidade não coopera, a fantasia corrige”, já dissera Freud há muito tempo! Conclusão: seguimos acreditando naquilo que desejamos!

Ninguém faz apologia da passagem ao ato na clínica de qualquer analista, mas também ninguém duvida de que essas irrupções não calculadas também fazem parte do jogo que o processo analítico propõe. E mais: há quem defenda que essa não seja a pior parte nesse tabuleiro! O erro e a transgressão, cedo ou tarde, reivindicam seu lugar e seu valor…

III – E os espectadores do teatro? Talvez pela quantidade de peças que envolvem experimentações e pesquisas, habituamo-nos às investigações “desrespeitadoras” daquilo que se convencionou chamar de quarta parede.

Tanto assim que, recentemente, assistindo a um espetáculo de “teatro entretenimento” – em que sobre um palco italiano vemos desenrolar-se uma estória alheia a nós, espectadores –, flagrei-me numa estranha desconfiança em relação à verdade da brincadeira, desconfiança maior do que aquela que as pesquisas do teatro pobre e alternativo mobilizam!

Sinal dos tempos! A peça parecia ocorrer lá ao longe, pronta, separada da plateia, independente de tudo, envelhecida – e, numa palavra, irreal! Senão, quase autista… Colocando-nos, espectadores, numa passividade a que perdêramos o hábito.

Irônicos momentos de um processo histórico e milenar! Quem algum dia diria que o exagerado zelo em relação à fronteira de separação palco/plateia poderia por em xeque justamente a suspensão da descrença?!

IV – Duas perguntas:

1 – O analista que – por fidelidade à tradição – se coloca surdo para as brisas que sopram nos novos tempos também não correria o risco de envelhecer precocemente?!

2 – Qual será a quinta parede – no Teatro, na Psicanálise e na vida – que aguarda paciente um homem de coragem a atravessá-la?