Chá e Cadernos 100.78
Mauri Paroni
Deu branco. Qualquer artista viveu esse momento: Num brevíssimo instante de palco, raro, esquece-se o que fazer, o que falar, onde se está. Num piscar de olhos, vem o pânico, a morte indolor, a eternidade paradoxal. O desespero. O cineasta Luiz Buñuel e o roteirista Jean Claude Carrière retrataram isso n’O Discreto Charme da Burguesia, quando um jantar burguês se dissolve com um imprevisto pano de boca que se abre diante de uma plateia; texto inexistente, em situação monotonamente repetida durante o filme. Mas as personagens são pessoas que sentem a infinita angústia de não saberem como continuar sem a morte. O drama, rico ocorre a qualquer ser humano, à exceção da rasa desumanidade do Big Brother ou de quem se faz governar por fake News. A genial intuição de Buñuel/Carrière lembra a situação narrada no artigo anterior. (https://www.spescoladeteatro.org.br/coluna/colete-ortopedico)
Deu branco. Foi na companhia em que, aos 39 anos, tendo empregado toda uma vida de estudo e trabalho, vivi tal somatização. Não há como não acontecer quando se trabalha com a transgressão do paralelismo existência/teatro. Paralelismo não é identificação ou justaposição. O percurso que havia programado era o de fazer teatro convencional para superar o teatrão, em respeito à tradição do teatro ocidental. Bastaram três ou quatro encontros (narrados em artigos anteriores: com artistas transgressivamente geniais para alterar esse percurso. Virei um diretor que tinha a desconstruir um modelo de arte para, ambiciosamente, do mesmo tentar ir além.
Mas, lembrou-me o próprio Buñuel de sonhos e devaneios, houve um encontro mais sério: foi definitivo; foi com a Morte, seca, de foice afiadíssima, além do intelecto. O desgosto com a derrocada da companhia quase me matou por um tumor. Tumor sempre aparece de surpresa, na traição, e o branco teatral fica muito mais sério e verdadeiro, com todo o respeito ao Teatro. Aprendi que é impossível morrer num palco, e que a existência é, sim, diferente da ficção, por mais performances que persigamos na arte. Nem superior, nem inferior: simples e terrivelmente, são dois mundos paralelos que cortam as respectivas retroalimentações.
Deu Branco, com graves consequências: desencadeou a esclerose múltipla mantida em remissão. O tumor foi duramente vencido – mas isso não se descreve, sabe dele o porquê somente quem o sofreu ou conviveu com o paciente; veio a cadeira de rodas, o drama pessoal aqui confesso, mas emarginei a morte. Não me detenho a descrever o impossível de se descrever ou representar. Um dia reencontrarei lâmina a distinta senhora da foice.

Um Cão Andaluz
Deu branco. Quando acontece, a iniciativa de entrar na primeira biblioteca possível fornece um pronto atendimento do intelecto salvador da morte súbita, e nos faz cruzar com gênios. Gênios como Leopold Senghor:
“Le pouvoir de l’image analogique ne se libère que sous l’effet du rythme. Seul le rythme provoque le court-cicuit poétique et transforme le cuivre en or, la parole en verbe.” (*)
“O poder da imagem analógica só é liberado pelo efeito do ritmo. Somente o ritmo provoca o curto-circuito poético e transforma o cobre em ouro, a palavra em um verbo”.
Ou cruzamos o caminho de Luis Buñuel:
“En cualquier sociedad, el artista tiene una responsabilidad. Su efectividad es ciertamente limitada y un pintor o escritor no puede cambiar el mundo. Pero pueden mantener vivo un margen esencial de no conformidad. Gracias a ellos, los poderosos nunca pueden afirmar que todos están de acuerdo con sus actos. Esa pequeña diferencia es importante.” (**)
“Em qualquer sociedade, o artista tem uma responsabilidade. Sua eficácia é certamente limitada e um pintor ou escritor não pode mudar o mundo. Mas eles podem manter viva uma margem essencial de não-conformidade. Graças a eles, os poderosos nunca podem afirmar que todos concordam com suas ações. Essa pequena diferença é importante.”
O aparente silêncio de uma biblioteca dialoga com o silêncio verdadeiro de um cemitério. Solapa a barbárie da maioria das redes sociais. O silêncio rítmico da ficção abriga a dialética da censura psicológica versus a repressão política. Todos operam bruscas mudanças de caminhos existenciais, todos são transgressores. Vale a pena transgredir para conhecer a natureza da tradição.
(*) https://www.liberation.fr/planete/2001/12/21/seul-le-rythme-transforme-le-cuivre-en-or_388075/