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Qual velho Comendador é somente uma estátua?

Publicado em: 07/11/2023 |

Chá e Cadernos 200.10

Mauri Paroni

Sempre será mais que uma estátua. É a dimensão do tempo numa narração que atravessa os séculos, as modas, as culturas, os continentes. Passa pelo oriente e pelo sul do mundo através dos contadores de estórias. A chamada linha ibérica foi iniciada no suporte de papel por Tirso de Molina (1579-1647), Molière (1622–1673) e Lorenzo da Ponte (1749-1838) Pode servir de ilustração narrativa lírica.

Arquétipo do macho narcisista latino, Don Giovanni recorre a enganos e mentiras para conquistar mulheres. Tenta estuprar a jovem aristocrata Dona Anna, é surpreendido pelo Comendador, pai dela, protetor arquetípico e, em luta, mata-o. Em seguida, corteja e seduz a camponesa Zerlina, explorada, despertando o ciúme de seu noivo Masetto. Para também conquistar a serva de Dona Elvira, troca de roupa com seu servo Leporello. Masetto, Zerlina, as seduzidas Dona Elvira, Dona Anna e Don Ottavio, seu noivo , perseguem Leporello e Don Giovanni, que se escondem no cemitério, ao lado da tumba do… Comendador, o pai de Dona Anna!. Narcisista delirante, Don Giovanni profana a sua estátua, convidando-a para jantar em sua casa. Esta comparece, formal, ao encontro; mas seu tempo se esgota. Por ser uma criatura celeste, recusa o alimento terreno que lhe é oferecido. Exige que lhe seja formalmente retribuída a visita, com a mão estendida em garantia do cumprimento da promessa. Dão-se as mãos, que se fundem num gelo mortal. Ordena-lhe que se arrependa. Em vão: um abismo de fogo se abre e a estátua conduz Don Giovanni ao Inferno, ainda vivo.

Essa última cena é maravilhosa de se ver em teatro. As falas escritas pelo libretista Lorenzo Da Ponte são marmóreas:

“Don Giovanni a cenar teco m’invitasti, son venuto.Non l’avrei già mai creduto ma farò quel che potrò.”

[Don Giovanni, a contigo cear me convidaste; vim. – Jamais acreditaria, mas arranjarei o que puder.]

 

Postas em música hierática, solene, contrasta com o cinismo incerto e infantil de D Giovanni, passam a contraponto e fuga tecnicamente perfeitos. Estão entre os sons dos mais maravilhosos da história da música.

Essa última cena é maravilhosa de se ver em teatro. O Salzburger Marionettentheater torna mágico o contraste entre a leveza da forma marionetista e a severidade do tema.

Criança, ouvia essa ópera de Mozart somente acompanhado por meu pai, hoje falecido. Tinha medo. Tremo até hoje. Isso frequentemente foi lembrado em jantares notívagos com o finado amigo Otávio Frias Filho. Entre risadas. Lembrança da lembrança. Que imensa saudade… o tempo avança.

Johann Simon Mayr, conhecido como Mayer ou Maier (1763-1845), e outros artistas dos séculos XVIII – XIX como Giovanni (1740-1816) e Domenico Cimarosa (1749-1801) utilizaram vários libretos (a partir do iniciador do drama ou comédia burguesa Carlo Goldoni) que fazem protagonistas estátuas. Não estão separados da tradição teatral brasileira. Formam uma estranha e fascinante combinação alegórica com a ancestralidade sonora e plástica da África Ocidental – sua música e dança também são a origem dos carros alegóricos das escolas de samba.

 

Alegorias, metáforas e realidade: Estátuas falantes nunca foram novidade na época pré-industrial. Eram o ponto alto da fantasmagoria. As estátuas dos convidados eram ainda mais populares. Poderosas, indestrutíveis, falantes, eram um avanço progressivo de uma coisa antiga.

As estátuas foram marcos públicos espalhados por todo o Império Romano, mais ainda que as efígies cunhadas nas moedas a emprestar- lhes legitimidade no valor de troca. Eram mais velozes que os vírus que hoje passam a espada de Dâmocles sobre as finanças vistas como divindade monoteísta.

O povo, impedido de levantar o olhar ao imperador, reverenciava-o em qualquer edifício com a sua presença estatutária. Augusto estava em qualquer canto do seu império ao mesmo tempo. Um deus. De código concreto, antigo e contemporâneo ao mesmo tempo. Reproduzível e metaforizado na arte formal do poder sob veste conservadora.

Estátuas, hoje, podem ser as contas no facebook de assinantes falecidos. Fantasmas. Lápides de celulares. Convidados de pedra virtual: simulacros conquistadores de Tinder. Conservadores descolados. Mistificadores de palavras abusivas por poder desnaturado, instrumento de charlatões que empesteiam a cultura de nosso tempo. Passarão, congelados em suas lápides. Denunciados pelo teatro fora do palco, pela cenografia mental e dramaturgia de cena que são o império estético que nos ensina, desde sempre, a encenar a vida amorosa quotidiana.

Para concluir esse pensamento e enunciar um caro insight que acaba na Arte: as muitas possíveis e contraditórias narrações de Don Giovanni chegam a construir um mundo de afeto aburguesado de sala-de-jantar e quarto-de-dormir para longe das ruas e campos santos. Estes representam agrupamentos amorais porém revolucionária e alegremente plurais. Esse mundo, ouso afirmar, faz parte da Arte enquanto fluxo vital e reconhecimento da condição humana heroicamente desafiada pela morte a determinar um termo à farra feliz. Farra que estimula a criação e a vida. Insight que qualquer poder autoritário almeja destruir. E que artistas almejam construir.