EN | ES

A Pré-Atuação como Etapa Necessária para o Ator

Publicado em: 02/10/2017 |

Refletindo sobre alguns procedimentos do trabalho do ator, foi fundamental pensar no fenômeno teatral como assembleia e, sobretudo, nas questões que envolvem a pré-atuação. Segundo a tese de doutorado “O Fio do Novelo: Um Estudo Sobre a Pré-Atuação do Ator”, sua autora, Rachel Araújo de Baptista Fuser, vai dizer:

 

“Sendo a atuação um processo de extrema complexidade, e cabendo ao comediante a gerência dos procedimentos capazes de conduzi-la a bom termo, torna-se imperioso estimulá-lo a tomar consciência de como a atuação se processa nele. Ao perceber seu funcionamento na qualidade de artista criador, o intérprete, aproximando-se desse processo, torna-se apto a criar condições favoráveis à sua instauração.” [1]

O trabalho do ator é sempre uma operação complexa. Espiritual, ousaria dizer. Artaud já dizia que “o teatro é, antes de tudo, ritual e mágico, ligado a forças, baseado em religiões, crenças efetivas”. [2] Atuar é primeiro interpretar, somente num momento posterior é que surge o ato da representação, que em si mesmo pode ser lido como algo ligado simplesmente à reprodução.

“A verdadeira arte e a representação de um modo geral são incompatíveis. Uma destrói a outra. (…) A arte não tolera o de qualquer maneira, o em geral e o aproximadamente.” [3]

No trabalho do ator, a repetição não existe – ou não deveria existir. O bom ator vai propor sempre um jogo, com regras sempre muito claras, estabelecidas em conjunto com a direção e com sua equipe de criação. O jogo teatral é o responsável pelo frescor do trabalho do ator e deve ser algo dinâmico, vivo.

O fenômeno teatral é uma assembleia, uma celebração. É a presença do ator, em seu ofício, permitindo a metamorfose entre ele e seu personagem diante do público. Ocorre nesse momento a comunhão, consolidando uma troca, real e absoluta.

O ator tem de atingir o imaginário do público, que também tem que jogar, fazendo de conta que aceitam as regras propostas nesse encontro. Normalmente, o público não está interessado no Hamlet, mas sempre em si próprio. O que ele procura – e que passa a ser o maior desafio para o ator – é que esse Hamlet lhe seja familiar e tome as suas emoções. Surge, então, a identificação, a empatia, necessárias para a fruição estética.

Um dos aspectos fundamentais do trabalho do ator é seu material imaginativo. Não da imagem que representa o real, mas a que mobiliza a ação. A imagem como poder de síntese, com enorme gama de significados. A imaginação surge da intencionalidade, começa e termina quando determinamos. A imagem não é apenas visual. É sinestésica também e pode estabelecer espontaneamente relações entre uma percepção e outra.

Bachelard disse certa vez que “imaginar é ausentar-se, é lançar-se a uma vida nova”. [4] Dessa forma, atuar também significa estar ausente.

O bom ator sabe disso. E sabe também que deve ser, antes de tudo, um cavaleiro, nunca um cavalo. Quando bem estruturado, o bom ator torna-se símbolo no momento em que se transmuta em personagem. Então, ele vocifera o que existe no mais íntimo dos sentidos do espectador, que irá se emocionar pensando que esse ator está falando exclusivamente para ele. É como se esse espectador ouvisse um segredo e sentisse a responsabilidade de guardá-lo apenas para si.

O ator, nesse momento, está vestido com sua máscara, sua personagem. É a operação da metamorfose que amplia essa máscara, revelando e mostrando todos os mundos desse ator que agora se converteu em símbolo.

Assim, o fenômeno teatral é um devir que se atualiza somente no nível simbólico, transitando sempre no universo do invisível. O espectador tem apenas a leitura dessa máscara e se esquece da presença física do ator.

Então, qual seria a função da máscara na instauração desse fenômeno teatral no momento em que ele se dá? Do ponto de vista simbólico, a máscara é o corpo real desse imaginário. Dessa forma, o teatro só existirá no campo simbólico e será sempre sustentado pelo fenômeno, que é instaurado pela máscara na presença do público, dependendo, portanto, daquele que a vê. Assim, dentro da realidade do imaginário, o ator pensa que é e o público tem certeza de que ele é.

Mas tudo não passa de um jogo que vai existindo à medida que vai se realizando. O contato deve ser lúdico e as regras devem ser estabelecidas e esclarecidas ao longo desse processo.

O teatro põe em jogo uma relação afirmada. [5]

É uma relação arquetípica. O ator procura algo em si próprio que ele possui, mas que não conhece. Ao encontrar, ele se reconhece. Este é o fator primordial no trabalho desse intérprete: sua transformação em si próprio.

É esse o processo diário do ator no palco. O ritual que aponta sempre para uma identificação, corporização de uma necessidade que existe, que lhe é vital. É entrar, a cada atuação, em um estado sagrado. É um momento sutil que, quando acontece, passa a não existir mais. Por isso a atuação é sempre uma atividade de expansão, única em sensações e emoções.

Em cada récita, o ator mobiliza uma energia guerreira. Em seu ritual, está sempre em estado de alerta, concentrando suas energias, contando sempre consigo próprio. Essa é sua mobilização de sobrevivência. E não só emocional. Física, na maioria das vezes.

[1] Rachel Araújo de Baptista Fuser, O fio do novelo: Um estudo sobre a pré-atuação do ator, São Paulo, Dissertação de Mestrado – ECA/USP, 2000.

[2] Antonin Artaud, Linguagem e vidaop. cit., p. 75.

[3] Constantin Stanislavski, Manual do atorop. cit., p. 166.

[4] Gaston Bachelard in Rachel Araújo de Baptista Fuser, O fio do novelo: Um estudo sobre a pré-atuação do atorop. cit.

[5] Jean-Jacques Roubine, A arte do ator, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p. 93