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Por um teatro pobre… E carequinha!

Publicado em: 02/02/2013 |

Não tem nem um ano de vida, e o Espaço Cultural Pinho de Riga (Rua Conselheiro Ramalho, 599 – Bela Vista), já traz uma boa variedade de atividades conectadas à cultura e às artes do palco. Cursos, palestras, exposições, espetáculos… E, além de teatro, o espaço encampa também projetos nas áreas de dança, artes plásticas e até música. É muito bem-vindo um espaço que se pretende alternativo às grandes casas de teatro comercial: os espetáculos que ele abriga são experimentais, por assim dizer.

Artesanal, o teatro alternativo é sempre experimento destemido, e se expõe com despudorada proximidade ao erro. Propositadamente, assim, a cena está sempre na iminência de desabar.

“Irredenta”, para citar apenas uma das peças ali em cartaz atualmente, põe no palco o texto da argentina Beatriz Mosquera, escrito em 1989. Realização da Cia Pêndulo, com iluminação impecável de Alessandra Marques, direção de Mauro Concha e casa lotada, a peça e a trupe voltam ao espaço em breve (julho), depois de uma pausa de um mês.

A atmosfera opressiva de uma cidade que imaginamos ser Buenos Aires, mas que poderia ser qualquer capital latino-americana (Havana, Santiago, São Paulo…), permeia o espetáculo, e põe diante de nós, espectadores, um mormaço de terror. A peça, nesse sentido, é fiel à autora, embora tenha se dado liberdades nesta versão.

“Irredenta”, “terra de ninguém”, é metáfora dos territórios virgens que carregamos em nós mesmos, a nos desafiar, exigindo incansável trabalho de metabolização.

A tirania da personagem Lola faz lembrar Bernarda Alba, da peça de Garcia Lorca. Matriarca dominadora, ícone dos estados totalitários. Interpretada aqui com extrema força por André Castelani, enorme no palco, compõe o que a autora chamaria de “realismo exasperado”.

Os outros atores, Felipe Alves, Thiago Henrique do Carmo e Walmir Bess revelam igualmente grande disposição física, estapeando-se e cuspindo-se em cena, e buscando habitar esses seus corpos subitamente estrangeiros.

Todos eles carecas, mas encarnando prostitutas, os atores/personagens poderiam ter saído de um filme de Fellini ou de Almodóvar. Roçam assim o tema do grotesco, que explica talvez a razão da plateia rir em certas passagens que mais nos causam calafrios.

Peruca é elemento raramente ausente da cena de teatro e remete sempre, se quisermos, a inúmeras possibilidades interpretativas. Sua ausência, nessa peça em que justamente ela seria mais necessária, expondo ao invés de recobrir, problematiza a noção de verdade de modo poderoso, como a nos apresentar personagens despidos de tudo (retomo brevemente essa ideia no pós-escrito um, abaixo).

Propositadamente, ou não, o caráter político do texto de Mosquera é suavizado nesta leitura da Cia Pêndulo. O grupo destaca, felizmente, os emblemas da luta pessoal contra nossas próprias misérias. Pois, sublinhando hoje a temática política do texto dos anos 80, tão vital vinte e quatro anos atrás, a montagem correria o risco de se mostrar datada.

Todos os méritos a quem busca recolocar na tradicional área do Bexiga a sagrada energia que um dia foi de tantos espaços, núcleos formigantes de criatividade, entre eles o do velho TBC, pelo qual se revelaram tantos talentos.

E vivas para as trupes pobres e carecas da nossa cidade, cheias de boa-vontade, realizando trabalhos artesanais, por amor ao ofício, aproveitando cada fresta de seus espaços, derivando dali cenários, muitas vezes de genial precariedade, e das tripas coração, mobilizando criatividades do fundo da alma, lançando mão de elementos rudimentares, transformando-os noutras coisas, figurinos e objetos de cena, somando pequenas e grandes vocações, para espalhar um teatro sincero justamente ali, onde já não há mais poesia. E, por ser sincero, o teatro pobre vem inteiro e com a mágica ainda cheia de frescor. Por isso, intacta.

Ps1- Interrogar o estatuto de verdade é a operação maior que o campo das artes promove, especialmente o teatro. Operação essa que não cessa nunca de se relançar adiante.

ps2- A propósito desse tema (a “verdade”), em março e abril deste ano, passou silencioso e rapidamente pelo Teatro Commune (Rua da Consolação, 1218) um espetacular monólogo: “9 mentiras sobre a verdade”. Realização da Cia Teatro Líquido, texto de Diones Camargo e direção de Gilson Vargas. Pela atuação impressionante da atriz gaúcha Vanise Carneiro, uma aula de imenso teatro, rogo aos céus que a peça volte! Alguém me escuta??!

ps3- Em tempo: por este trabalho, Vanise Carneiro ganhou merecidamente o Prêmio Açorianos de melhor atriz 2010.

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]