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Pavores de Elevador

Publicado em: 30/04/2021 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos, 100.40

Nobreza e Liberdade

Um dos netos do Conde Von Mittel, espectroscopista do Brownart General Medical Center de Fort Lauderdale, Flórida, entrou no elevador. Acabava de apaixonar-se à primeira vista por uma moribunda desertora cubana a quem havia escaneado o cérebro. Exausto, sentou-se no banco vacante da ascensorista. Fechou os olhos. Devaneou com seu novo amor. Morto, violou-lhe a tumba. Apoiou o corpo da jovem militar num velocípede. Madrugada adentro, expôs a estranha composição, num interminável passeio sob o luar na Baia dos Porcos. De retorno a seu quarto, moldou-lhe a pele com seda e gesso. Transformou os seus olhos em cintilantes bolinhas de gude azuis. Manteve os seus cabelos. Encheu o restante com panos e formol. Perfumava o cadáver amorosamente quando o silencio gélido da ação foi quebrado pela abertura repentina da porta do elevador. O coração disparou pelo flagrante. Candidamente, desmaiou.

O caso prescreveu. Vive em liberdade.

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Virgo in Excelsis

Em Santos, no único edifício sobre a areia que não era inclinado, todos se orgulhavam dos elevadores. Deslizavam silenciosamente, livres do excesso de atrito das guias deformadas, como ocorria nos poços das construções vizinhas.

Madrugada quente e lasciva: uma moradora comemorou os seus quinze anos com a cumplicidade da parada de emergência. O elevador, preso no topo do poço, vibrou por um certo tempo com muita energia entre as guias do décimo-quarto e do décimo-quinto andares. A festa provocou queixas rumorosas. O síndico, um calmo engenheiro nascido na Sicília, argumentou: “Deparei com traços de sangue no carpete da cabine. Troquei o carpete. Bom… eu mesmo. Bom… deveria chamar a polícia para verificar as gravações da câmera. Não chamei”

Reflexão e silêncio.

O síndico acabou reeleito por aclamação unânime.

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Chás e Delicatessen ao Som do Violino da Encantadora Gudrum Schemrzgarten – Confeitaria Vienense – Edifício da Paz – Rua Barão de Itapetininga, 262, 2° andar – República – Centro – Circuito Místico – Ambiente Art Deco – Frequência da Alta Sociedade Após as Compras – Intelectualidade Modernista – Cursos de Dança e Boas Maneiras de Madame Louise Frida Poças Leitão

Este foi produzido como podcast em Radioarte:
https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/radioarte-medo-de-elevador-ii
https://www.spescoladeteatro.org.br/audios/confeitaria-elv-mixdown.mp3

Johann Strauss II embalava mesas vespertinas de Ex-integralistas, simpatizantes da Semana de Arte Moderna, revolucionários de 1932, apreciadores de salsichas e Wiener Wein – estes, proibidos de consumi-las. Média de idade: 70 anos. Dançavam também; os sapatos, arrastados no assoalho, davam a impressão de levantar uma certa poeira ressecada. Gudrum unia-se àquelas vítimas de nostalgia exasperante: criança, fora expulsa dos sudetos alemães da Morávia e os bens de seus pais, confiscados pelos decretos do presidente Beneš.

Detestava alguns frequentadores: ironicamente, eram funcionários do consulado da República Socialista da Tchecoslováquia. Eram sempre os últimos a saírem, encharcados de cerveja. Para evitá-los, descia pelas escadas. Atravessava, silenciosa, a terra de ninguém do primeiro andar. Sequer olhava para a porta daquele consulado.

A excessiva lotação do antigo elevador provocou o rompimento de um de seus quatro cabos de sustentação. Não despencou, mas o freio de emergência foi acionado. Os funcionários do socialismo real ficaram confinados em companhia de alguns saudosistas teutônicos de outro matiz ideológico. Para atenuar a tensão dos velhos alemães, desesperados atrás da porta pantográfica, um deles sacou seu violino e tocou Rosen aus dem Süden. Sem conseguir se controlar, chorava e repetia o ato pelas horas intermináveis que o corpo de bombeiros empregou para trazer a cabine do elevador ao térreo. Os bombeiros se comoveram. Foi a primeira vez em que agiram ao som de valsas vienenses.

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Estatística

A cabine do elevador empacou entre dois andares. Decidiu-se finalizar o conserto em curso ali mesmo: período de férias, prédio vazio. Benicio ficou na parte de cima, Expedito dentro da cabine. A fatalidade veio, pontual. A porta do corredor foi aberta e ele viu passar um vulto, que se precipitou do 24° e se estatelou no chão. Do corredor gritos desesperados de uma mulher. “Meu bebê!”

Não era uma criança, era um cão.

Mesmo assim, Expedito, dezoito anos de reparos em elevadores, teve sérios problemas para voltar a trabalhar. Aconselhado por um psicólogo, sua empresa custeou-lhe férias em sua cidade Natal, Itabuna. O avião enfrentou uma zona de turbulência severa. Ficou aterrorizado. Um co piloto de folga que por acaso viajava a seu lado tentou acalmá-lo. “Fique tranquilo. O senhor sabia que o avião é o meio de transporte mais seguro que existe, depois do elevador?”.

Livraria francesa na rua Barão de Itapetininga, São Paulo – Fonte Veja

 

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Ascensão e queda de Roma

Na velha loja da Livraria Francesa, a área reservada aos quadrinhos não era acessível. Os cadeirantes que quisessem visitá-la eram prontamente transportados por quatro fortes seguranças. QAP, às ordens: Um marmanjíssimo cadeirante, entre humilhado e embaraçado, solicitou ajuda para transpor aqueles dois degraus que o separavam do paraíso. Procurava um quadrinho histórico sobre o imperador Cômodo. Afrontado pela realidade, conta aos seus consternados ajudantes que, em situações análogas àquela na Roma antiga, patrícios não caminhavam. Faziam-se carregar por escravizados numa liteira. Contou também que escravizados não tinham alma. Eram objetos. Hoje é diferente: “Na época de Comodo, vocês seriam meus escravos – e eu seria um homem rico. Eu sou pobre. E vocês têm um salário.”
Na estante, acha a estória que procurava. Ao retorno, continua: “Cômodo era famoso por sua liteira, equipada de pesadíssima banheira de mármore – ele não só não caminhava; também não saía do banho para comer. Não conseguiram envenená-lo porque tal extravagância provocava-lhe vômitos constantes. “Não é que tenha me lembrado de Cômodo por que estão me carregando… mas porque organizava uma romaria singular: promovia banquetes itinerantes onde cada parada era consagrada à letra inicial do nome da iguaria a ser devorada. Ainda bem que aqui é uma livraria, que eu não sou o Imperador Comodo e que vocês não são desalmados. O progresso da história relativiza muito as coisas, não é mesmo?”

Livraria francesa na rua Barão de Itapetininga, em São Paulo. Fonte: Veja

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Detalhes da fachada e do nome do Edifício Casa das Arcadas, na Sé, em São Paulo – Fonte: Wikipédia. Foto: Ana Laura Prado

 

Kaspar Hauser do centro velho

Este roteiro foi produzido como podcast em Radioarte:
https://www.spescoladeteatro.org.br/audios/arcadas_mixdown.mp3
https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/radioarte-medo-de-elevador-i

No Edifício Casa das Arcadas, na esquina das ruas Quintino Bocaiúva e Benjamin Constant, havia de tudo: pensão, marmitas, massagistas, escritórios, advogados, escreventes, administradores, organizadores de bibliotecas, consultórios médicos, maçons, cartomantes. Estranha Babel, eram todos lusófonos naquele laico prédio centenário. Menos o ascensorista, anão, que repetia, em registro cômico, este refrão búlgaro: “Не съгрешил днес, но ще грях!” Para quem exigisse tradução, limitava-se a remetê-la ao yddishe: ” דו זאלסט ניט געזינדיקט הייַנט, אָבער איר וועט זינדיקן!” (*). Não falava português. Não tinha contrato de trabalho – trabalhava e morava ali havia décadas. Não saia do prédio para nada. O alfaiate judeu Breno Kolovoff, búlgaro, que reunia jogadores de xadrez no sexto andar, dizia saber o significado do misterioso refrão: “quero ser sepultado na vertical.”
Assim foi. Fulminado em seu elevador por um enfarte, arranjaram-lhe uma discretíssima sepultura cristã num ermo Mausoléu ermo do Cemitério do Araçá, pertencente à decaída família paulistana proprietária do prédio. Segundo o improvável desejo, seu esquife foi velado fechado, em pé, no primeiro andar do velório. Seu corpo foi deitado dentro do elevador que o transportou pela última vez ao térreo.

(*) Não pecaste hoje, mas vais pecar!

 

Casa dos Arcadas. Rua Quintino Bocaiúva, São Paulo. Fonte Wikipédia. Foto: Eli Kazuyuki Hayasaka

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Ausência de poesia

Sem manutenção, o elevador da construção despencou e matou quem estava dentro. Depois de ocorrido, não havia quem pudesse fazer alguma coisa, nem Chico Buarque. Morreram sem atrapalhar ninguém. Ausentes deuses.