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Palavra, Grito e Teatro

Publicado em: 30/08/2023 |

Chá e Cadernos 200.8
Mauri Paroni

Pessoas moralizantes do senso comum receiam, no fundo, que seus descendentes façam teatro seriamente. Famílias de teatro profissional formam-se alimentando a sua prole com o seu teatro. Trata-se de linguagem da aparência, desde sempre em todo lugar deste Globo. Também presente em lendas praticadas diante da vaidosa fogueira noturna em forma de teatro engomado, televisão ou o horrível Big Brother. Falsa bruxaria.

O outro lado da coisa nos mostra um louco entre loucos – Antonin Artaud (1896-1948). Não há como ter feito pelo menos algumas horas de qualquer atividade de palco sem sentir-se minimamente louco. Nem ter sido chamado de louco. Muito menos não ter sentido a tremenda inadequação de qualquer plano, projeto, planejamento de despesas e o que se pretende realizar em palco, seja ele o tapetinho, a praça ou o edifício teatral. Da mesma forma, conseguir fazer qualquer coisa que preste num palco sem essa mesma inadequação, sem esses mesmos planos. Por mais que se participe de esperas e duras discussões de produções que instam a apresentar planos, textos completos no papel, documentos, previsões. Que não se responda, figadal ou racionalmente: “se soubesse exatamente o que pretendo fazer, não teria desejado fazer”.

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O cineasta surrealista Buñuel disse para imaginar o conteúdo que se preferisse dentro da caixa preta do cliente oriental mostrada aberta à bela (da Tarde) Catherine Deneuve. Se ele soubesse, não teria rodado meio metro de película. Da mesma forma, os maiores gênios do palco do século XX foram trancados em manicômios mais que em prisões. Até porque os manicômios na história nasceram há relativamente pouco tempo. Antes, havia morte, prisão ou isolamento puro e simples. Assim como não se deve negar que a loucura também existe – há casos famosos na arte canônica como o cervantino Quijote ou o camusiano Calígula. Por isso escrever sobre teatro e loucura em sedes separadas me é impossível. Mas um gênio nos legou o livro talvez mais desafiador sobre o teatro e o chamou, na perfeição dos loucos, O Teatro e Seu Duplo.

Um dos espetáculos brasileiros mais memoráveis que vi a propósito foi de um discípulo de diretores convencionais como Zbigniew Ziembinski (1908-1978), Adolfo Celi (1922-1986), Gianni Ratto (1916-2005), mas seguidor do espírito anticonvencional artaudiano: Rubens Correia (1931-1996), no teatro Ipanema, Rio de Janeiro em 1986. Rubens e o diretor ator Ivan de Albuquerque (1932-2001) ali trabalharam vários textos clássicos, com alma pessoal e cortante. Materializavam tudo com pouca representação, num teatro pobre, de muito oficio e muita autobiografia associada àqueles nomes clássicos, compreendido o nome de Antonin Artaud.

Rubens Correia em “Artaud”

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A quem dá seus primeiros passos no teatro, ainda que seja muito mais amplo e complexo, Artaud inspira a contar a dor e a alegria de sua vida e de seu arredor, seja ele qual for – de poetas a palhaços. Hoje, seriam também os lavadores de pára-brisas nos semáforos. Limpam os vidros de carros pelo menos mil vezes mais caros do que ganham em toda a existência. Como limpassem as lentes dos óculos de quem não os quer ver, a eles e ao mundo. Diante da peste, santidade é pecadora e pecado é santidade.

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O Teatro e Seu Duplo introduz a forma do Teatro da Crueldade, concebida nos primeiros trinta anos do século XX. Aqui, crueldade não trata sadismo ou dor, mas a estética teatral do irrepresentável.

“O teatro é, antes de tudo, ritual e magia (…) não se representa. É a própria vida no que é irrepresentável.” Quanto mais lermos sobre e de Artaud, melhor. Grito mal compreendido, muito se urra em muita representação sedizente artaudiana – e outras falsamente derivadas de Jerzy Grotowski (1933-1999), Eugenio Barba. Vi muita gente enfiar o pé na jaca e gritar à toa. Por vezes, justificadamente, contra ditaduras e iniquidade social consequente. Esse abismo formal virou uma escola. Grita-se quando não se sabe o que fazer em cena sobre o não cênico. Mas isso nada tem a ver com Artaud – é uma metáfora difusa na superficialidade que grassa do mau teatro às novelas televisivas. Melhor dar uma olhada nesse breve filme sobre o grito de Artaud e de seus amigos próximos. Recomendo vivamente a visão.

Seu grito. Vale a pena ouvir.

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Escreve-se rios de tinta em relação a Artaud. A única coisa, breve, que me atrevo a acrescentar: Tendo ouvido gritos desesperados de mães fugitivas da guerra da Bósnia no metrô, prole nos braços, elas falavam sua língua para implorar esmolas contando, desesperadas, seu sofrimento atroz na guerra. Nada que ouvi na vida se compara a tal desespero – somente o grito de Artaud. Contar o sofrimento impossível de si e gritá-lo na sociedade é teatro para além de qualquer palavra.