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Ondas

Publicado em: 13/03/2023 |

Mauri Paroni Chá e Cadernos 100.98

Gosto de pensar, ver e viver a SP Escola de Teatro enquanto centro de produção de Cultura (jovem). Isso significa quotidianamente adentrar em direção ao centro de uma geografia espacial resolutiva de muitas funções, harmonias e aparentes contradições de nosso planeta. Paralelamente, é também caminhar diretamente às nossas incisões biográficas – por agora, deixemos estas de lado. Delas se ocupa o paradoxo dos paralelos que se encontram no infinito. Quero crer que fora de nossa alçada e alcance.
Para vencer a dificuldade de assentar o primeiro argumento, peço uma primeira ajuda ao filósofo e escritor romeno Mircea Eliade.
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“A água simboliza toda a potencialidade – a fonte de toda existência possível.”
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Outra alegoria poética que ecoa dentro deste sessentão será uma segunda ajuda: “ Ripples”, do Peter Gabriel dos tempos de sua banda Genesis – no trecho que segue.
“Indo para a terra prometida
Onde o mel flui e leva pela mão
Poe você de joelhos
A agua surge e nela aparece
O rosto (dela) olhando para cima
Move a cabeça como se dissesse
Que é a última vez que você será como é hoje
Veleje longe, longe Ondinhas jamais voltam
Vai para o outro lado
Veleje longe, veleje longe (*)
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Mohammed
Mohammed é um imigrante malês que comercializa produtos da China na frente da Escola. Posto em relação às alegorias citadas anteriormente, vira a ponta contemporânea da antiga Via da Seda; esta foi, sobretudo, um gigantesco escambo criativo e cultural que desenvolveu a forma moderna do mimo, da palhaçaria, da luta livre, da dança, do sexo, do amor, das misturas étnicas, das performances, dos duelos, da música. A função dessas performances era superar as incompreensões causadas pelas palavras das centenas de línguas e dialetos falados ali.
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Cada gesto de Mohammed no ato de dialogar com os passantes são pedrinhas atiradas ao lago. Exatamente como descrito no poema de Peter Gabriel e na alusão à água de Mircea Eliade; tais ondas ecoadas num lago viram infinitas, muito além de seu francês natal. Mohammed veio do Mali – instigado, parece nada saber da revolta dos maleses no Segundo Império Brasileiro. Mas ele sabe: está longe fisicamente dos seus griôs – culturalmente detentores de seu conhecimento artístico e cívico – sabe o que sua Mãe (Terra) lhe ensinou. Ensinou tudo. Evolui, como as ondas, a cada oração que discretamente faz atrás do muro tombado onde apoia a mercadoria empregada na sua luta pela sobrevivência. Transforma sua vida inteira numa performance – Um contraste barroco na revivescência de seus ancestrais maleses, muito mais cultos que seus tiranos; revive a revolta factualmente esmagada pelo poder imperial brasileiro; revive o sangue derramado na praia sem saída de volta pelo mar.

As poucas mulheres sobreviventes ao massacre dos revoltosos maleses na Bahia rumaram ao degredo em São Paulo e no Rio de Janeiro. A mãe do jurista preto Luís Gama supostamente foi uma daquelas mulheres. Luís Gama morou e morreu no Brás.


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Uma ponta expandida da via da seda. Uma onda
A impossível economia do crescimento infinito na China já se retrai. Mais ainda por deixar de lado as mulheres – segue o Ocidente. Despreza a cidadania feminina nas esferas políticas. Antimítica, falsamente racionalista, tenta “trancar” a rua de Isis, Iansã, Amaterasu – Marias Virgens e Padilhas que o digam. A Mãe Terra sabe: Não haverá crescimento econômico que se sustente se não for imediatamente equilibrado com os recursos “ao feminino” do planeta. Do respeito ecológico à paridade salarial de gênero.
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Em seu modo de ser também uma Via da Seda, a SP é expansão em silêncio, largura e profundidade. Projeto feliz, jamais confunde horizontalidade com superficialidade – esta última, uma infeliz tragédia cultural em qualquer tempo ou latitude – triste legado do desordenado uso hodierno de aplicativos nos celulares. Sim, aqueles objetos caríssimos que curvam as cabeças dos caminhantes. A canga dos tempos presentes.
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“Mas nunca será demais repetir que não há a menor probabilidade de se encontrar, em parte
alguma do mundo ou da história, um fenômeno religioso puro e perfeitamente original”.
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A dicotomia entre o sacro e o profano imaginada por quase todas as culturas onde o teatro separou-se do rito enquanto atividade civil privilegiada – é altamente discutível quanto a um suposto modo ocidental. Uma superficialidade que premia reacionários e solapa estudos sérios no próprio Ocidente – efeitos disso estão longe da sutileza da criação cultural jovem que se pratica na SP.
*** (…) O simples fato de existir, de viver no tempo, pode encerrar uma dimensão religiosa. A “alegria de viver” (…) não é um gozo de tipo profano: ela revela a satisfação de existir, de participar – mesmo de maneira fugidia – da espontaneidade da vida e da majestade do mundo. (…)

Capítulo 87: O homem e o destino. Sentido
da “alegria de viver”)
Sempre Mircea Eliade. A concluir, Peter Gabriel. Ouvir aqui.
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https://www.youtube.com/watch? v=QFw4BCvtd1Q

Mauri Paroni
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(*)
Marching to the promised land
Where the honey flows and takes you by the hand
Pulls you down on your knees
While you’re down a pool appears
The face in the water looks up
And she shakes her head as if to say
That it’s the last time you’ll look like today
Sail away, away
Ripples never come back Gone to the other side Sail away, sail away