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Olhar, alegoria, metáfora: roteiros do real

Publicado em: 13/07/2021 |

Chá e Cadernos 100.51
Mauri Paroni

O olhar artístico necessita da alegoria e da metáfora do real para ser crível. Vira linguagem e cognição de relações humanas, valiosíssimos instrumentos para intervenção do artista na sociedade. Um desses instrumentos, alegóricos, é o roteiro imediato traçado na mente de quem observa a obra de arte, o narratário. Todo bom artista necessita de um saber fundamental que é o imaginário criativo desenvolvido enquanto roteiro imagético.

Proponho, a seguir, três percursos alegóricos partidos do real: dois desejáveis e um indesejável.

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Primeiro percurso desejável: uma cirurgia

Deveria estar bastante evidente a certeza de que, com a pressão baixa e a pandemia, era no hospital para onde temerariamente fui me consultar que eu deveria ficar. Não deu outra: fui retirado imediatamente de minha cadeira para um leito (também) com rodas. Exame daqui exame dali, a frequência cardíaca estava a 28 batidas por minuto. “Ninguém vive assim”, foi o que ouvi da cardiologista. Uti. Marca-passo provisório e, depois, um definitivo. Recuperação na uti e suas cortinas, sons de diagnósticos e prognósticos letais. Amputação de um lado de minha postação e duas mortes do outro. Paz eterna e concitações alternavam-se. Olhares truncados. Desesperos, ironias, tristezas. Sonda jugular. Uretra. Dor. Medo. Variações cardíacas emergenciais. Poucas palavras. Bipes incessantes.

Cada som, cada substantivo, cada ação trazia uma troca de olhares. Quem olhava mantinha a coragem. Quem fechava os olhos, desejava submergir para não voltar a viver.

Fui rebocado para a mesa operatória, onde a anestesista disse para pensar coisas boas ao respirar fundo um gás soporífero. Nem precisaria. A cirurgiã tinha olhos iluminantes que emanavam o azul profundo da Capella degli Scrovegni em Padova, terra de minha avó. Disse-lhe isso, não me lembro se antes ou depois da cirurgia; antes do corte, ela me comunicou a sua decisão de instalar o marca passo do lado direito, de onde um fio transmitiria salvadores impulsos elétricos rítmicos para o lado esquerdo. Para o coração. Poesia, ritmo e geografia num corpo que ensaiava o seu desconjuntar-se da harmonia política desta existência. Ao acordar, enfim, lembrei que havia elucubrado sobre a sensação de serem todas mulheres na sala operatória. Pedi desculpas por não perder a mania burguesa de lisonjeá-las por me concederem a imensa felicidade de respirar ritmado pela batida do coração a verso pentâmetro iâmbico; se quisermos, uma africana batida binária. Lembro cristalinamente dos olhares trocados no perseverante universo cirúrgico anti Giotto.

Dias depois, em transferência por longuíssimos corredores, lembrei dos olhares filmados de minha maca para os tetos hospitalares, mancomunado com o diretor com quem escrevo estranhos curta metragens. O que se filmou juntou-se à música de Wagner. Um roteiro, um corpo que escreve fora do papel, um sobrevivente estupefato porque a cirurgiã trazia este sobrenome: Sartori. Sartori é o nome da família de Padova responsável pelas máscaras mais eloquentes de um universo – o da Commedia dell’Arte – que pode existir somente no terreno da memoria. Por ironia, a cirurgia previu, para a minha tranquilidade, que haverá de operar-me quando da troca da bateria do marca-passo. No caso de estar vivo até lá. A essência de tudo o que se cria depois da operação cardíaca foram e são uma gramática humana de olhares.

A navegação na memoria do destino que a vida tece é um roteiro possível de ser escrito depois de tê-lo vivido, se se conseguisse observar o encordoamento imaterial invisível de uma Penélope a ser protegida de ser assassinada pelo nosso Ulisses sedento de poder. Somos, no mínimo, binários.

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Segundo percurso desejável: penitentes nazarenos

Propõe-se uma troca de olhares editados pelas relações poéticas a serem estabelecidas entre os leitores narratários e os sujeitos das fotografias publicadas abaixo. São da responsabilidade, escolha e contextualização das mesmas trocas de olhares. Que nos associemos a elas, a partir dos olhares. Nestes, há histórias reais e possíveis.

O leitor há de perdoar-me o grande numero de imagens, não possuindo este escriba as entrelinhas geniais de Clarisse Lispector. Isso, para termos ideia da infinitude das conceitualizações, o que não quer dizer que não sejamos nós os seus roteiristas, fossem textos, espetáculos, filmes e até artigos como este, obrigados a estabelecer a sínteses, função principal da arte, o que nos diferencia do fluxo vital aleatório. Quando desordenados de qualquer síntese, tendo a não ver nada artístico ou artesanal no que chamam de arte – exemplo do big brother.

Sem querer interferir demais na construção do narratário, ressalto a fé cênica das imagens da sacra representação da paixão, do gênero brasileiro da escola de samba, do sacrifício, do uso social da alegoria. São razão maior do poder da obra de arte performática. Estão ordenadas como “jogo da memória” onde procuramos, viradas de modo a não enxergarmos fisicamente, as suas imagens gêmeas; somos instados a localizarmo-las dentro da nossa memória, no percurso traçado entre as cartas postas contra a mesa de jogo. Quem olha a quem e a quem, sucessivamente, até o fim. Nisso estaremos a traçar uma estória fictícia que guia os eventos dentro de nossa mente. Esse é o melhor estímulo para a atividade de criação de um roteiro, seja ele visual, literário, musical, fílmico, quadrinhos, televisivo, luminoso, teatral ou… tudo junto.

Infinitos são os nomes deste alfabeto humano (as fotos de olhares postas abaixo): Nazarenos penitentes, fariseus anônimos, Janine Correa, Renato Rosati, Alvise Camozzi, Sepultador do Araçá, Élcio Nogueira Seixas, Luciana Borghi, Gaetano D’Amico, Oscar Silva, Thaís Simi, Sergio Romano, Renato Gabrielli. Luca Ferrari, Carlotta Mattiello, Paola Bigato, Cassi Diniz Santiago, Elisa Band, William Shakespeare, Vander Bernardino, Raphaela Gomes, milhares de fieis e participantes da semana santa de Andaluzia, em película, Paola Baldini, Laura Trevisan, Cristine Peron, Giampaolo Köhler, Gisela Arantes, Cristine Peron, Bruno Kott, Ziza Brisola, Marcelo Szickman, Adriana Vaz, Annette Najman, Erica Forlim, Luisa Renaux, Maria Della Costa, Giovanna De Toni, Gabrielle Amadori, Malu Bierrenbach, Kenji Suguimoto, Cristina Terzoli, Porta bandeira da GRES Unidos de Itapuā, Tarcisio Tassan, Marcelo Coelho, Baterista do GRES São Clemente, Diego Ruiz, Hilton ribeiro, Sarcófago do médio império egípcio, Sergio Sant’Anna, Penitentes de capilote (Não membros KKK), Francisco de Goya, Silvano Melia, Sergio Romano, Livio Tassan, Todas as estatuas da Virgem, de Jesus Cristo, de Legionários e demais Santos, Magnus Drogset, Fernanda Moura, Hilton Ribeiro, Esculturas de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Santuário e Via Sacra de Congonhas do Campo, Mariana, Raissa Peniche, Desarmadores de minas alemãs da 2ª Guerra Mundial, Royal Army, Mestre sala e porta bandeira da GRES Mangueira, Rainha Elisabeth, Comissão de frente da GRES Portela, atores de Morram os Artistas, Cricot 2, Allan Tripney, Rodrigo Souza, Liz Reis.

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Advertência: percurso alegórico indesejável.

É fundamental fazer notar a execrável semelhança dos penitentes nazarenos que usam o capelote a cone, que esconde o rosto e deixa somente os olhos em mostra, com a vestimenta típica da Ku Klux Klan, a criminosa organização supremacista norte americana. Que se apropriou da roupa histórica de penitência e dos condenados à fogueira pela Igreja. Que aqui fique anotada a apropriação indébita da aparência dos milhares de fiéis que optam por não renunciar a uma atividade de fé secular por causa de mais este crime daquela organização.

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Às imagens: