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O Roteiro que Somos

Publicado em: 11/05/2022 |

Chá e Cadernos 100.89
Mauri Paroni

“Quando o jogo de xadrez termina, o peão e o rei vão para a mesma Caixa.” Dizem ser um ditado chinês. Não sei, mas tive um amiguinho, o Chen, que o dizia toda vez que algum moleque da minha rua de infância sacasse um tabuleiro de xadrez. Era um jeito de ele existir entre nós. Lembro muito dele e do ditado a cada dia a mais neste envelhecer entre aula e escrita.

Escrever é lembrar e lembrar é viver mais ao escrever – diz a obra de flashbacks do francês Marcel Proust (1871-1922), além da maravilhosa sugestão de entender a arte como o amadurecimento de transformarmos as nossas vivências em lembranças revividas no presente, com tempo e emoção.

É o melhor jeito de imaginarmos o roteiro que nós somos.

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Tumbas em Volterra

Lembro a caixa a reviver a experiência em uma antiga tumba, apenas citada no artigo precedente.

Vamos a ele com mais detalhes. Quando dirigia uma companhia semiestável para o centro de pesquisa para o teatro de Milão, estava no mesmo Festival de Teatro em que havia se apresentado um espetáculo/ritual dos homens azuis do Deserto do Saara. Nele, um sacrifício de uma ovelha havia assustado muita gente, além de ter indignado a outra, menos, digamos, preparada para acompanhar a coisa. Na pegada da adrenalina e de um café, fomos, assim que raiado o dia, conhecer uma tumba nas cercanias de Volterra, burgo medieval do centro da Toscana, antiga Etrúria. A tumba era profunda, quente, entrava-se agachado num labirinto sem luz, uma experiência impressionante. Flutuando no tempo impreciso da história antiga, tínhamos somente a voz do guia como norte. Era a voz de um ator do centro de pesquisa teatral (CSRT) de Pontedera, participante do grupo com que Jerzy Grotowski trabalhava nos seus últimos laboratórios. Naquele escuro, se ia um a um. Repentinamente, ao tato de, creio, um sarcófago descrito pelo guia como de mármore; e que o pouco que se sabia é que fosse originariamente de um defunto etrusco despejado de seu eterno repouso por um invasor. Fora reutilizada por outro defunto, provavelmente um ator romano, visto a inscrição etrusca apagada pela sobreposta inscrição latina:“Eu já morri muitas vezes, mas nunca assim”. Ou seja: não era só de um sujeito realmente morto, mas dois. Eram mais inscrições e relativas memorias a menos. Ou mais, vai saber: as inscrições etruscas ainda são praticamente indecifráveis; os romananos tentavam apagar a memoria etrusca. E as tumbas importantes eram de mulheres.

Mais tarde, ponderei que aquela tumba era roteiro dos bons. E que fora feliz na imensidão do tempo, fascinado e ansioso por estar dentro de uma catacumba etrusca. Apaixonado pelo teatro e pela história, foi a primeira excursão na Itália depois de ter sido convidado para uma inadvertida e apaixonada trama ali embaixo, no coração da tumba, foi uma viagem e tanto na verdade transitória desta existência.

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Colega semanal de transporte público para deficientes físicos, um coveiro proseia sobre fraudes em monumentos. O fato impressionava o motorista cuja perna esquerda fraquejava no uso da embreagem. Deficiente visual, o coveiro era portador de severa diabetes e voltava da hemodiálise.

“Vinte e cinco anos a ver enterro. Sou aposentado do serviço funerário.
Estudei pra professor, virei sepultador. Estou cego, foi diabetes. (Pausa). Fui sócio de cineclube. Mas não gosto de cinema americano. Gosto de cinema iraniano, indiano. (Pausa). O que é bonito na arte é a imitação da realidade. (Pausa). Defuntos são mais que a realidade. São verdade. E olha que eu sepultei gente por mais de 25 anos.
Nunca vi ninguém ser enterrado sem ser quem foi enquanto vivo. (Pausa). Só o padre diz que o corpo se separa da alma. Isso eu nunca vi.
“Muito trânsito”, diz o motorista.
“O motorista se perdeu. (Pausa). Na hemodiálise tem sofrimento, mas a gente pode conversar sem ser aquela conversa que de tem no sepultamento.(Pausa). Um dia, supervisionava uma avenida la’ e vi um fio saindo de um monumento. Vi que estavam roubando energia de uma sepultura. (Pausa). De uma fonte de luz de uma tumba. Segui o fio. Pulava o muro e alimentava o carrinho do pipoqueiro.
(Pausa. O motorista segurou uma gargalhada).
“Em outra tumba, descobri que uma mulher morava ali. Usava as gavetas vazias como armário, beliche, espelhos, veludos, perfumes e batons. Tudo de luxo, de primeiríssima qualidade. Era uma moça daquelas que trabalham de noite perto do pipoqueiro – má influência. Era linda.
(Pausa).
Morreu o meu motor, desculpe o tranco”, diz o motorista.
“Tudo bem . Carro liga de novo. (Pausa). A gente tá tendo essa conversa ainda vivos. Pensa nisso, Professor, pensa nisso.”

Todas as quartas contava desde tramas de filmes a estórias do cemitério e de fraudes funerárias.


Do livro de tombo do Cemitério

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Um aluno físico que trabalha no laboratório interno à gigantesca pedra que é o Gran Sasso (Itália Central), afirma desconhecer tumbas de desimportantes. É, com efeito, a verdade histórica mais antiga. Tumbas com escritas requerem construções, requerem poder, força-trabalho, dinheiro. Corpos de escravizados não são tumulados, embora tenham sepulturas que desaparecem com suas memórias.

O colega sepultador mencionava que até quando o arquiteto Ramos de Azevedo ( Teatro Municipal, mansões, a sede Brás da SP Escola de Teatro) projetasse a reforma da área popular do cemitério da Consolação para mausoléus da elite, os corpos dos pobres e escravizados era marcado, se tanto, com uma cruz de fortuna e um número. Covas comuns; apesar de o seu primeiro sepultado ter sido um escravizado. Comum na época: por exemplo Wolfgang Amadeus Mozart foi sepultado em 1991 na Viena imperial; ou o hoje largo da Liberdade era o “dos enforcados” – lugar de execuções, castigos e sepultamento sumario de escravizados. Ou os chamados “campi” em Veneza – neles, caminha-se sobre uma imensidão de defuntos. A lista é infinita, milenar, de todos os povos e culturas, como os roteiros que somos.


Gran Sasso