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O projeto por trás – Um convite ao espectador

Publicado em: 02/10/2017 |

Este artigo foi escrito para o catálogo do
FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO de São José do Rio Preto, edição 2011, do qual foi uma das CURADORAS.

Nesta edição do FIT, ano de 2011, a curadoria, instada pela percepção de que o teatro é – e sempre será – uma arte pública, colocou-se, antes de afirmações, para engendrar um recorte temático (a priori de um reconhecimento dos trabalhos inscritos), um conjunto de indagações que, se de alguma forma pudessem ser respondidas na medida do olhar sobre os trabalhos inscritos, levassem, elas próprias, à percepção da latência temática presente nesses trabalhos. Algumas das perguntas: como a noção de real é representada pelos artistas de teatro hoje? Como os grupos/produções materializam a busca da experiência do real? Como a forma (as escolhas formais) é capaz de falar das transformações da vida pública, sem, no entanto, impor-se a ela, ou negá-la?

Como sublinha Jean-Pierre Sarrazac, em “A Persistência do Drama” (entrevista a Carolina Serra Azul, em junho de 2010, publicada na revista Traulito, da Companhia do Latão): “Inventar formas é uma necessidade, porque o sentido está na forma, mas o formalismo é uma doença do decorativismo. Posso dizer que, às vezes, não há nenhum pensamento”. Para esse importante pesquisador e dramaturgo francês contemporâneo, o formalismo pode ser formidável, desde que haja “um projeto por trás” (por projeto poderíamos entender a capacidade de o teatro tecer verdadeiramente uma crítica ao mundo, de ser capaz de problematizar o real?).

Logo, o que guia o conjunto de peças desta edição é antes a capacidade de um artista de teatro de constituir uma identidade cênica potente, capaz não só de suscitar interrogações à própria obra, mas também de estimular o espectador a refletir – no corpo da obra que se apresenta – sobre sua própria identidade, tanto pessoal, como social. Nessa cartografia de processos menos ou mais acabados (o que está em jogo não é a espetacularidade), pautados pela urgência das experiências de grupo (na sua maioria) e voltados ao experimento de linguagens híbridas (o épico, o lírico e o dramático), o que se está propondo, de fato, é a ampliação do campo de debate – na medida em que o mundo se apresenta como território da experiência e o teatro, como o da teatralização da experiência.

Instâncias do teatro não-dramático
Levando-se em conta que, desde meados do século 20, o teatro torna-se cada vez menos dramático, ou seja, menos amparado pelas leis imutáveis do drama – enquanto “dialética fechada sobre si mesma, desligado de tudo o que lhe é externo”, nas palavras de Peter Szondi, é interessante notar como, a despeito das diferenças, algumas semelhanças conectam os trabalhos em questão. A começar pela dissolução de fronteiras entre sujeito e objeto, espectador e espetáculo, cidadão e sociedade, se assim quisermos. Tornando-se inseparáveis, essas estruturas acusam de maneira irreversível o obsoletismo da estrutura ficcional da intriga, constante no gênero dramático.

Nota-se, portanto, na maior parte dos trabalhos, uma certa constância de jogo formal, aproximando autor e plateia numa relação direta, e não mais como no teatro ilusionista, em que a existência dessa relação deveria ser mediada pela ação (vida) de cada personagem. O enfraquecimento da intriga, bem como a dissolução da representação figurativa, enaltecem o caráter performativo das peças, salienta os imbricamentos entre a ficção e o real, e uma forte propensão a expressar (falar), mais do que a comunicar (agir). Um teatro que está se realizando no aqui e agora, ou, como nos diz Josette Féral, que, ao enfocar a realidade na qual se inscreve, está “desconstruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador”.

Esse jogo de tensões, que coloca no texto elementos para além das características do drama, e que é, ao mesmo tempo, uma proposição conteudística, ou melhor, que está imbricada a ele incondicional e indissociavelmente, revela direta e indiretamente o panorama de tensões criativas das últimas décadas. Segundo o dramaturgo francês Armand Gatti, “cada assunto possui uma teatralidade que lhe é própria”. Nesse sentido, as peças contemporâneas tendem a realizar-se mais como um jogo que não mais atribui ao texto (literário) ou à qualquer outra instância criativa nenhum tipo de primazia sobre os processos de construção do objeto artístico – ao contrário, edificando nas fissuras da deshierarquização, o melhor ponto de vista sobre determinado assunto ou tema.

Sob um viés estritamente dramatúrgico, esse jogo vinga na proeminência de figuras – borrões falantes –, e não mais na de personagens cuja identificação emotiva propõe a sensação de inexistência do espectador; nas falas dessas figuras, em substituição aos diálogos – a matéria prima da forma dramática, instância que impulsiona a ação; no surgimento de um ser indeciso e cambiante, no lugar do herói instado a fazer escolhas/agir; na dissolução, fragmentação e descontinuidade da trama, ao invés do enredo totalizante; na sugestão do espaço, no lugar do cenário situador; no esgarçamento da tensão da ação, substituindo a progressão dramática linear, que leva ao conflito e ao clímax.

Nessa perspectiva, o que se torna potente é a reinvenção do acontecimento teatral, pautado pelas transformações da própria vida humana e de suas relações na sociedade. Nas palavras do dramaturgo belga Jean-Marie Piemme (“O Teatro Hoje”), o trabalho teatral interessa na medida em que “instaura uma relação específica com a obra, uma abordagem na qual as redes da linguagem, do tempo e do espaço se cristalizam nos corpos de uma tal forma, que a conjunção provoca em quem assiste um efeito de desconhecido, mesmo quando se trata das obras mais conhecidas”.

Os trabalhos enveredam, mais das vezes, na ideia de presentação, no lugar da representação. Pode-se cogitar que afirmam muito mais o naturalismo do jogo do que da representação. Nesse viés, é constante a presença de performers – não de personagens – em montagens como “Oxigênio”, “Gardênia”, “Banal”, “Apatrida”, “Tríptico”, “Meire Love”, “Se uma Janela se Abrisse”, para citar algumas. Mesmo quando a figura em cena mantém fortes características de personagem, ou é o espaço que se desloca (“Navalha na Carne”), ou é o próprio tratamento dado à condição dual da figura cênica, misto de personagem e performer, que se evidencia (“Savana Glacial”, “Ópera dos Vivos”, “Villa + Discurso” ou “Where Were You on January 8th?”).

Formativas 
As atividades formativas propõem não um caráter complementar no sentido de incrementar o debate em torno das peças, mas se tornar elas próprias, antes de tudo, um dos pilares fortes do festival. O trânsito entre a mostra de trabalhos e a construção de um pensamento é essencial para que não se descole fruição/recepção de reflexão/pensamento. Nesse sentido, a curadoria, ao ser convidada a também definir as atividades formativas, elencou como tema do grande debate as “Políticas da Forma”, propondo a constituição de um olhar sobre as obras, a partir, aqui sim, de premissas norteadoras, articuladas para revelar o “projeto por trás”, como nos diz Sarrazac.

De acordo com a pesquisadora Silvia Fernandes, em seu artigo “Experiências do Real no Teatro” – publicado neste mesmo catálogo –, as práticas cênicas atuais caminham pela investigação das realidades sociais do outro e a interrogação dos muitos territórios da alteridade e da exclusão socialNesse campo, o eixo das formativas não poderia constituir uma ação incisiva se arrefecesse ou tornasse menor o seu propósito de convidar público, artistas e pensadores à articulação e construção que nos diga dos novos tempos, das novas formas, das novas políticas.

Como um sismógrafo da apreensão das muitas realidades de hoje, o debate vai ao público com vista a discutir não apenas peças que colocam suas figuras/personagens nas roldanas dos processos de construção cênica, mas sobre figuras/personagens que questionam sobre seu país, sua localidade, sua identidade. Teremos maturidade para aprofundar, de fato, a compreensão de metáforas de ser e estar que ultrapassam o mero estatuto do teatro como teatro, ainda que não abandone sua dimensão teatral? Em outras palavras, estamos maduros para pensar num teatro que visa reconectar a linguagem à realidade? O FIT 2011 é um convite para, juntos, pensarmos nessas e em tantas outras questões.