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O futuro só ao futuro pertence

Publicado em: 02/10/2017 |

Geralmente demoro um tempo para ver um filme que está bombando. Evito filas, excesso de gente (geralmente mal educada e ruidosa) – (sim, estou já dando vazão à chegada dos meus 50…), comoções da moda etc. Logo, só fui assistir a“Amor” (Amour), do genial Michael Haneke meses depois do furor em São Paulo. Ainda por cima, confesso, preferi ver em vídeo, no velho e delicioso sofazinho marrom da sala. Ali, recebi um choque de apuro estético, força narrativa, economia nas interpretações, urgência temática.

Mas o melhor estava por vir. Aquele final não se harmonizava com o que tinha fruído até então. Burrice minha? Falta de sensibilidade? A essa altura eu já estava sentada no sofá, com as mãos nos joelhos, tentando compreender algo mais do que até então se mostrava a mim. Aquele final, não, não tinha nada a ver com as pistas que o filme tinha me fornecido. Lembrava-me dos amigos e colegas palpitando que aquele final era o suicídio dele, também. Mas, ok, alguém que se suicida, e cujo espírito vem à tona, precisa ter seus chinelos e roupão frisados? Precisa ter aquele quartinho sublinhado? Não, tinha alguma coisa errada com a minha compreensão.

Maluca que sou por narrativa (quer dizer, um pouco mais do que isso, sou uma estudiosa, também) e ciente de que qualquer ótimo roteirista ou dramaturgo não faz do seu final senão uma espécie de retorno geométrico ao início, voltei o DVD. Uma, duas, três vezes, para o acontecimento e a conversa que seguem, entre o casal ao entrar em casa, depois do recital de piano:

  1. Uma tentativa de arrombamento da porta de entrada do apartamento;
  2. Um comentário dela sobre os quadros de uma amiga que foram roubados sem as molduras;
  3. Um desejo dele de continuar bebendo;
  4. Ela dizendo a ele: fique à vontade para continuar bebendo (numa alusão de que ela iria dormir);
  5. Troca de roupas dele sob o nosso olhar – roupão e chinelos;
  6. Comentário sobre o pavor que uma invasão ao apartamento causaria neles.

Talvez haja mais detalhes nesse início, mas esses seis me chamaram a atenção. E no decorrer do filme tudo tão inebriantemente aterrador, distante, quase insuportavelmente irreal (e, paradoxalmente, tão transbordantemente real), e aquele assassinato súbito, ele caminhando pelo corredor no escuro – goteiras no corredor? –, aquela pomba invadindo o espaço, policiais invadindo o espaço, imagens em close dos quadros sem as respectivas molduras, e aquele final estranho, uma torneira novamente sendo aberta, ela impassivelmente normal, ele cansado, mas impassivelmente normal. E aí ambos vestindo suas roupas quentes para sair de casa para…? Comprar um CD? Avisar o porteiro da tentativa de arrombamento? Costumam tomar o café da manhã fora? Depois, a filha chegando para visitar os pais (claro, ela tem a chave de casa, como eu naturalmente tenho a chave da casa de meu pai)…

Tempo depois de rever e rever o início, o insight: tudo foi um pesadelo, ou desvario/devaneio/delírio. Ele bebe mais um pouco no quarto ao lado (comum os casais franceses dormirem separadamente) e acorda meio ressacado no dia seguinte. Um golpezinho de enredo? A mim, não. O diretor quis mostrar MUITO mais do que isso:

A mim, Haneke oferece o ponto de vista do pesadelo ou delírio para nos mostrar que a imaginação pode ser sempre muito mais atroz do que a própria realidade. Pensar no que pode acontecer comigo, no futuro, ou com meus familares e amigos (incluindo a cachorra), nunca é o que realmente vai acontecer. Ou melhor, não necessariamente. Imaginar ou sonhar com o pior é sempre apenas “imaginar ou sonhar com o pior”. Claro, o filme é muito mais um golpe sobre nossas emoções do que um artifício de narrativa (embora esse jogo de pistas seja o máximo).  A tal ponto o personagem do filme exemplifica isso que seu olhar intrigado ao ver a mulher do mesmo modo como se despediu dela na noite anterior (inclusive dizendo que ela estava bonita, quando voltaram para casa) é como dizer a si mesmo: eu vivi tudo isso mesmo num outro plano, que não o da realidade imediata? Com o filme, reforçou-se o sentimento em mim de não tentar dar ao futuro a cara que ele não tem. O futuro só ao futuro pertence.

E.T.: E o que são as interpretações de JEAN-LOUIS TRINTIGNANT e EMMANUELLE RIVA? Que grandeza o cinema poder proporcionar papéis dessa envergadura a atores octogenários.