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Monólogos da Caveira VII

Publicado em: 20/09/2021 |

Chá e Cadernos 100.61
Mauri Paroni

Imberbe Darwin

Instruções para a plateia deste teatro, virtual ou não – voz em off.

A Origem das Espécies, do naturalista inglês Charles Darwin, é um dos trabalhos centrais da história científica. Publicado em 1859, explica a teoria de que “grupos” de organismos da mesma espécie evoluem no tempo através de seleção natural. O livro contém provas científicas detalhadas que o autor teve tempo para acumular tanto durante a viagem do HMS Beagle em 1830 quanto em seu retorno, rejeitando o criacionismo, que considera que as espécies, criadas por Deus, sejam perfeitas e imutáveis.

“Darwin não tinha aptidão para a medicina, nem interesse pelo sacerdócio. Mas, depois de ler a obra do naturalista alemão Alexander Von Humboldt, adotou a história natural como ‘hobby’ e aceitou embarcar na missão”. (*)

Mais que tudo, ele trouxe e foi buscar fatos, pessoas, história e saberes, bastante antes de elaborar a sua teoria. No navio H.M.S. Beagle, ele zarpou de Devonport em dezembro de 1831.

“A viagem do Beagle foi, de longe, o acontecimento mais importante na minha vida”

“Quando a bordo do H.M.S. ‘Beagle,’ como naturalista, fiquei muito impressionado com certos fatos na distribuição dos habitantes da América do Sul, e nas relações geológicas do presente para o habitantes do passado daquele continente. Esses fatos me pareceram lançar alguma luz sobre a origem das espécies – esse mistério dos mistérios, como foi chamado por um de nossos maiores filósofos. Em meu retorno a casa, ocorreu-me, em 1837, que talvez algo pudesse ser feito sobre isso e refletir pacientemente sobre todos os tipos de fatos que poderiam ter tido qualquer influência sobre ela. Após cinco anos de trabalho, permiti-me especular sobre o assunto, e elaborei algumas breves notas; estas eu ampliei em 1844 para um esboço das conclusões, que então pareciam-me prováveis: desde esse período até os dias de hoje, tenho perseguido firmemente o mesmo objeto. (…)” (**)

Adolescente entra no espaço de representação. Acende uma vela diante do crânio apoiado no chão. Coloca-se em profundo respeito diante dele.

Em sonho, seria sonho; no real empírico, é pesadelo. Eles, os seres humanos, vieram buscar a gente. Então eu fui buscá-los.

Acende uma terceira vela.

Quem sois? Saberás tu, ao fim. Não direi meu nome. Mas direi como é. Encontrei-me, em sonho, entre imagens devastantes de escravizados narrando uns que eram “de mimo” outros ”domésticos” ,“de lavoura”’, “de ganho”, “artesão”’– revoltei-me com tudo o que vi e de como foi-me mal contado por professores: a escravidão que vi era urbana. E cada região de África foi adequada ao tráfico relativo às diferentes funções que deveriam exercer, caso sobrevivessem à terrível viagem; isso foi romantizado, adocicado – ainda o é – no horror cínico. Temos ainda o mesmo tipo de escravidão, urbana, automática; vai além do sonho.

Encara seu publico ao acender a luz. Seu rosto transforma-se em pesadelo do real.

Havia mais escravidão urbana que no campo. Nenhuma delas foi admissível. Nas cidades, escravizados vendiam produtos e serviços pelas ruas. Ruas em que senhoras, mediante cortejos hediondos; exibiam sua riqueza exibindo o sofrimento dos escravizados.

Dizem-me determinista, que cravo destinos. Isso me causa revolta, somos descendentes casuais, não se trata de fé; e muito menos di se afirmar, acreditar que não se tem alma se não se foi batizado; mesmo se assim fosse, não passam de crendices inúteis; desenvolvi a teoria do que vi. Isso enlouquece cristãos; ainda que sirva para o consumo, ainda que o que importe é ter quem compre produtos, que se viva com escravizados de ganho, de mimo, urbanos, não só de cana-de-açúcar e de café’ … nem do resto, do algodão e que tais.

Pausa.

É o que temos hoje: o pesadelo desse amontoado louco de apartamentos assenzalados com quartinho, banheirinho, cozinha; manobrista, motoqueiro, garçom, servo, prostibulo, cabeleireiro, pet shop. Cidades desgraçadas, sem teatros, cinemas, escolas, hospitais decentes. Sem encontro. Sem sol sorridente. Com fome, violência, arma e ignorância.

Pausa.

O que resta: depressão, doença e crença na revolta que um dia há de nos redimir.

Na Bahia, fiquei 18 dias.

“Nunca é agradável submeter-se à insolência de homens de escritório, mas aos brasileiros, que são tão desprezíveis mentalmente quanto são miseráveis as suas pessoas, é quase intolerável”.

“Contudo, a perspectiva de florestas selvagens zeladas por lindas aves, macacos e preguiças fará um naturalista lamber o pó da sola dos pés de um brasileiro”.

Pausa.

Numa fazenda do Rio de Janeiro, escravizados foragidos foram encurralados defronte a um precipício. Uma mulher preferiu atirar-se no abismo a ser capturada pelo capitão do mato.

Pausa.

“Praticado por uma matrona romana, esse ato seria interpretado como amor à liberdade”.

Pausa.

“Mas, vindo de uma negra pobre, disseram que tudo não passou de um gesto bruto”. (***)

Pausa.

“Os brasileiros, até onde vai minha capacidade de julgamento, possuem somente uma pequena quantia daquelas qualidades que dão dignidade à humanidade”.

Pausa.

“Ignorantes, covardes e indolentes ao extremo; hospitaleiros e bem-humorados enquanto isso não lhes causar problemas”.

“O senhor Earl viu um pedaço de um membro arrancado com um aparelho de tortura, e que não sem frequência eles guardam em casa”.

Pausa.

“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que, em pouco tempo, ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados.”

Pausa.

“Espero nunca mais visitar um país de escravos”.

Imagens feitas por José Christiano de Freitas Henriques Junior

 

Museu Histórico Nacional, testemunhos documentais de África, coisa que se vê repaginada numa linguagem escancarada nas ruas – já a fotografia, nas ruas, dentro das casas – coisa que continua, o espetáculo do real: Quelimane, Congo, Inhambane, Moçambique, Mina, Mina Nagô, Angola, Cabinda, escravos de ganho.

Adolescente enxuga o seu suor da fronte e acende outra vela.

Qual evolução? Do que está ainda presente na vida quotidiana urbana brasileira, qual espetáculo podemos fazer? Está ali, real, é somente escrever e desmontar. Frases e fotos sem cosmética. O que é o Brasil?

Pausa.

Ah… estou num sonho…

Pausa.
Voz em off de Darwin.

Já que ainda sou imberbe, que ainda não escrevi “A Origem das Espécies”, que meu dramaturgista moderninho não se importa com começo, meio e fim, que, para terminar este monólogo, atirou-me num sonho futuro que virou pesadelo, ao atribuírem-me teorias pseudocientíficas de supostas inferioridades raciais, que temos um só ancestral… que supostamente inventei uma descendência única do macaco e que seriamos irmãos… tudo para perpetrar uma escravização abjeta. Depois de 150 anos que teria teorizado competições em mercados liberais, que haveria “darwinismo” entre humanos, que haveria relações sociais de seleção natural, que haveria aperfeiçoamento genético artificial: uma imensa falácia que está longe de mim. Inventou-se, ainda por cima, a eugenia, o “design” inteligente da natureza, a “melhora” de raças, a inteligência superior da natureza ou de deus, e vai saber onde vão parar… Fogueiras Antipedagógicas? Antipolíticas?

Pausa. Volta a falar.

Eu prefiro os cem anos de meu sósia Paulo Freire que os 150 anos de minha barba. Educação é política.

Pausa.

Farei a barba pela última vez. Terei tempo para estudar e escrever.

Acende uma vela, apagam-se as luzes, ele saca uma navalha. Dispõe um espelho e uma tina com água. Mastiga as palavras enquanto faz a barba.

O Beagle retornou à Inglaterra em 1836. Vinte e três anos depois, em 24 de novembro de 1859, publiquei A Origem das Espécies. Meu amigo FitzRoy,, que comandou o Beagle em duas viagens, endividado e acometido de um transtorno mental, incompletou seus 60 anos cortando a garganta com a navalha. Esta.

Pausa.

Esta?

Apoia a navalha perto do crânio. Sai imerso em intenso desconcerto.

Pano.

(*) Para Silvia Moreira Goulart, doutora em História da Ciência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

(**) (…)When on board H.M.S. ‘Beagle,’ as naturalist, I was much struck with certain facts in the distribution of the inhabitants of South America, and in the geological relations of the present to the past inhabitants of that continent. These facts seemed to me to throw some light on the origin of species–that mystery of mysteries, as it has been called by one of our greatest philosophers. On my return home, it occurred to me, in 1837, that something might perhaps be made out on this question by patiently accumulating and reflecting on all sorts of facts which could possibly have any bearing on it. After five years’ work I allowed myself to speculate on the subject (…) trad. MP

(***) Maria Isabel Landim, doutora em Biologia pela USP e organizadora de Charles Darwin – Em um Futuro Não Tão Distante (2009).
(****) https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/charles-darwin-passados-150-anos-teoria-da-evolucao-ainda-e-tema-de-intensos-debates.htm

Fontes:

– On the Origin of Species
By
Charles Darwin

– O escravo nos anúncios
de jornais brasileiros
do século xix
Gilberto Freire

https://www.dw.com/pt-br/o-que-charles-darwin-viu-no-brasil/a-39837311

– Rogerio Waldrigues Galindo
Diário do beagle.

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50467782

– Brasiliana Fotográfica Digital

https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/1