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Monólogos da caveira IV

Publicado em: 30/08/2021 |

Thomas Sankara – Água ou Champanhe?
(colagem  textual, criação e acostamento  dramatúrgico)

Mauri Paroni
Chá e Cadernos, 100.58

Blecaute. Texto em off, voz gravada:

Para uma melhor compreensão, recomendamos reflexão ao que segue: informações copiadas e editadas de livros escolares, ensaios, jornais italianos e internet.

O período chamado de terror da Revolução Francesa, com uso exacerbado  de condenações à guilhotina por  tribunais  revolucionários, foi  capitaneado principalmente pelo líder jacobino Robespierre, chamado de “incorruptível”.

Pausa.

Apesar da independência formal de suas muitas ex-colônias, a França continua a comandar e saquear 14 estados na África com métodos de tipo colonial (…).

Pausa.

Camarões, Chade, Gabão, Guiné Equatorial, República Centro-Africana, República do Congo, Benin, Burkina Faso, Costa do Marfim, Guiné Bissau, Mali, Níger, Senegal e Togo.

Pausa.

O jugo francês sobre esses países (…)é acima de tudo econômico e monetário,  (…) de forma a garantir a Paris um controle firme de sua moeda, bem como um monopólio exclusivo sobre o que eles abundam (ouro, urânio, petróleo, gás, cacau, café), com um duplo resultado: enriquecer a França e suas elites empreendedoras, (…) empobrecendo ao ponto da miséria os nativos (…).

Pausa.

(…) Agora é quase utópic objetivo de criar os Estados Unidos da África, com que os 14 Estados que ainda estão sob o jugo da França seriam de fato soberanos e livres para usar seus recursos naturais para o desenvolvimento das economias locais(…).

Pausa.

(…) O Franco colonial, (…) a moeda que a França impôs a suas colônias em 1945, imediatamente após o acordo de Bretton Woods, regulamentou o sistema monetário após a Segunda Guerra Mundial.(…) O país, que estabeleceu todas as suas características, detém o monopólio. (…)

(*)

Pausa.

Os Irmãos Lumière inventaram o cinema no final do século xix. Este filme foi um dos primeiros: “A  demolição de uma parede” (mur=muro); trouxe o primeiro efeito especial – o  reverse, com a parede que se reergue com o tempo invertido.


O filme dos Lumière

 

Pausa.

Projeção do filme dos Lumière sobre uma parede do local de representação: A Derrubada de uma Parede (52 segundos), com o reverso da ação. A parede é reconstruída pela estética mecânica na forma de reprodução inventada, a demonstrar uma ação contraditória à ação inicial. A cada toque do gongo, segue uma nova reprojeção, enquanto artistas dirão  suas falas. (filme disponível aqui –

https://www.youtube.com/watch?v=vRtmpQS7RE4

Uma atriz

Burquina Fasso é um país africano ocidental povoado entre 14000 e 5000 a.C. por caçadores-coletores. Assentamentos agrícolas apareceram entre 3600 e 2600 a.C. O atual Burquina Faso foi composto principalmente pelos Reinos Mossi, que se tornaram um protetorado francês no final do século XIX, ocupado e anexado pela França, condição que se manteve até 1960 quando recuperou sua independência. Conhecido como República do Alto Volta, o país foi rebatizado em agosto de 1984, pelo então presidente Thomas Sankara, (…) a partir das palavras Burkina (‘gente íncorruptivel’, em more) e Faso (‘terra natal’ em diúla), o que resulta em “terra das pessoas íntegras”.

Pausa.

Sankara liderou a revolução de 1983 no Burkina Faso. (…) Foi derrubado por um dos seus companheiros mais próximos, Blaise Compaoré, na altura vice-Presidente. Foi assassinado a 15 de outubro de 1987, juntamente com 12 dos seus companheiros.

Pausa. Acendem-se as luzes.

Um número impreciso de artistas monologantes entra em cena, onde há um gongo pendurado numa árvore seca. Um dos atores apoia um crânio no chão e acende uma vela.

Uma atriz, ao publico

Este é Compaoré, o assassino. O seu crime foi cometido contra todo um continente, sobretudo gente inocente. Na maioria, crianças.

Outro artista toca o gongo. Projeta-se o filme. Revezam-se:

No poder, Sankara criou obras e programas para alcançar a autossuficiência alimentar, ara produção e o consumo de produtos fabricados no Burkina Faso. Viabilizou  um  sistema de saúde e educação para todos no país e continente que era extremado pela pobreza. Seu estilo de vida era simples e coerente com seus patriotas. Obrigou qualquer dirigente governamental a adotar o mesmo.  Substituiu todas as viaturas de governo. Acabou com privilégios generalizados.

Gongo.

Emancipou as  mulheres, a partir da erradicação da poligamia – não pelo modo moralista  de um  senso comum colonial, mas por representar um privilégio ligado artificialmente a uma condição de  gênero oi de sexualidade. O seu governo incluiu um grande número de mulheres, uma prioridade política sem precedentes na África Ocidental. Proibiu a mutilação genital feminina, os casamentos forçados e a poligamia,  nomeou mulheres para altos cargos governamentais e as encorajou a trabalhar fora de casa e a permanecer na escola mesmo que grávidas. Promoveu a contracepção e encorajou os maridos a irem ao mercado e prepararem refeições para experimentarem por si mesmos as condições enfrentadas pelas mulheres. Em seu famoso discurso para assinalar o Dia Internacional da Mulher em 8 de março de 1987 em Ouagadougou, declarou que a Revolução Burkinabé estava “estabelecendo novas relações sociais” que estariam “reorganizando as relações de autoridade entre homens e mulheres e forçando cada uma a repensar a natureza de ambas”. Sankara nomeou mulheres para os principais cargos do gabinete e a recrutá-las ativamente para os militares.

Gongo. Projeta-se o filme.

Foi  o primeiro governo africano a reconhecer publicamente a epidemia de AIDS como uma grande ameaça ao continente. Possibilitou assistência médica imediata aos que precisassem desesperadamente dela.  Criou um programa de vacinação em massa para erradicar a poliomielite, a meningite e o sarampo. De 1983 a 1985, 2 milhões de Burkinabé foram vacinados. A mortalidade infantil era de  20,8%, durante sua presidência caiu para 14,5%.

Gongo.

Criou programas de habitação popular e infraestrutura onde nem se sabia o nome do que era um programa de governo.  Fundou  muitas fábricas de tijolos para acabar com as favelas urbanas.

Baniu o desmatamento ao abastecer 7.000 viveiros de aldeias com o plantio de dezenas de milhões de árvores. Fim da desertificação. Irrigou os campos para a produção do algodão.

Projeta-se o filme.

A construção de estradas e ferrovias conectou o pais inteiro. Mais de 700 km de trilhos foram assentados pelo povo Burkinabé para facilitar a extração de manganês na “Batalha dos Trilhos” sem qualquer ajuda estrangeira ou dinheiro externo. Tudo feito na raça. Seus programas provaram que os países africanos podem ser prósperos sem ajuda estrangeira.

Gongo.

Acabou com a taxa de analfabetismo de 90% do país.  Entretanto, greves de professores em larga escala, juntamente com a relutância de Sankara em negociar, levaram à criação de “Professores Revolucionários”. Para substituir os quase 2.500 professores demitidos, qualquer pessoa com diploma universitário foi convidada a ensinar através do programa de professores revolucionários. Os voluntários receberam apenas um curso de treinamento de 10 dias antes de começar a ensinar.

Gongo. Projeta-se o filme.

Os polêmicos Tribunais Revolucionários Populares foram criados originalmente para julgar ex-funcionários do governo de forma direta para que o Burkinabé médio pudesse participar ou supervisionar os julgamentos dos inimigos da revolução. Eles colocaram os réus em julgamento por corrupção, evasão fiscal ou atividade “contrarrevolucionária”. As sentenças  acabavam sendo suspensas. Para a diplomacia oficial estadunidense, elas não estavam de acordo com as normas internacionais. Os réus tinham que provar sozinhos a inocência dos crimes de que foram acusados; não podiam serem representados por advogados. Os tribunais se tornaram corruptos e opressores, alguns chegando até a promoverem acertos de contas e humilhações para inimigos. Muitos chamados “trabalhadores preguiçosos” foram julgados e condenados a trabalharem gratuitamente ou a serem expulsos de seus empregos e discriminados.

Gongo. Projeta-se o filme.  Pelos deslocamentos e gestos, percebe-se uma animosidade crescente a difundir-se entre os artistas.

Os Comités de Defesa da Revolução eram organizações armadas de massa. Foram criados como um contrapeso ao poder do exército, bem como para promover a revolução política e social… Coisa de Fidel Castro, “patrulha revolucionária” que exacerbou seu poder e viraram máfias que se imiscuíam na vida cotidiana do Burkinabé a fim  de acertar contas e punir os inimigos. O próprio Sankara admitiu publicamente o fracasso.

Gongo.

O povo pôs  a culpa das ações diretamente em Sankara. O fracasso dos Comités de Defesa da Revolução, juntamente com o fracasso do programa de Professores Revolucionários, o crescente desdém ao sacrificante trabalho e da classe média, o modo autocrático de Sankara, levou ao enfraquecimento parcial do regime e abriu as brechas…

Gongo. Projeta-se o filme.

… que França e  imperialistas tanto desejaram.

Pausa. Tensão entre os artistas.

E  teve a forma como ele lidou com os muçulmanos são o grupo étnico mais populoso de Burkina Faso e aderem aos rígidos sistemas sociais tradicionais. No topo da hierarquia está o Morho Naba, o chefe ou rei do povo muçulmano. Sankara viu a instituição como um obstáculo à unidade nacional, e procedeu para desmobilizar as elites muçulmanas. O Morho Naba não foi autorizado a ter tribunais, e os chefes de aldeia locais foram destituídos de seus poderes executivos e entregues ao Centro de Defesa da Revolução.

Gongo.

De acordo com Christian Morrisson e Jean-Paul Azam, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o “clima de urgência e ação drástica em que muitas punições foram aplicadas imediatamente contra aqueles que tiveram o infortúnio de serem considerados culpados de comportamento não revolucionário, tinha alguma semelhança com o que ocorreu nos piores dias da Revolução Francesa, durante o Reinado do Terror”.

Gongo. Projeta-se o filme.

A organização britânica de desenvolvimento Oxfam denunciou a prisão de líderes sindicais em 1987… Em 1984, sete indivíduos associados ao regime anterior foram acusados de traição e executados após um julgamento sumário. Uma greve de professores no mesmo ano resultou na demissão de 2.500 professores; depois disso, organizações não governamentais e sindicatos foram hostilizados ou colocados sob a autoridade dos Comitês de Defesa da Revolução, cujos ramos foram estabelecidos em cada local de trabalho e que funcionavam como “órgãos de controle político e social”.

Gongo. Projeta-se o filme.

“Sankara era entendido pelas pessoas mais pobres, aqueles que precisavam de justiça e consideração. Por aqueles que (…) tinham personalidade e se orgulhavam de pertencer à sua comunidade ou à sua nação”, recorda Moussbila Sankara.

Gongo. Projeta-se o filme. (sempre de 52 segundos)

Num discurso histórico feito em 1987, Sankara denunciou a dívida e as instituições de Bretton Woods, herdadas do colonialismo. Sankara ainda é visto como um herói pelos que derrubaram o regime de Blaise Compaoré (seu assassino) em outubro de 2014.

Pausa. Luzes se reacendem. Os artistas brigam pela posse do gongo e seu poder sobre os tempos do espetáculo. Percebem, em improviso mais físico que retorico, percebem a vaidade fútil de tal discórdia; Cada um saca anotações; passa a ler, respeitosamente diante da vela perto do crânio do assassino, frases de Thomas Sankara. Estas devem ser lidas apenas pelos artistas do elenco envolvidos emocional e pessoalmente (a critério da direção estética), a favor  ou contra o líder assassinado e sua política.

“Ai daqueles que amordaçam o povo!” (“Malheur à ceux qui bâillonnent le peuple”).

“As origens da dívida remontam às origens do colonialismo. Aqueles que nos emprestaram dinheiro são os mesmos que nos colonizaram. São os mesmos que geriam as nossas economias. Os colonizadores endividaram África através dos seus irmãos e primos que eram os credores. Não temos nenhuma ligação com essa dívida. Portanto, não podemos pagar por isso.”

“Eu não sou um messias ou um profeta. A minha única ambição é uma dupla aspiração: primeiro, poder falar numa linguagem simples, com palavras claras e inequívocas, em nome do meu povo, o povo do Burkina Faso; em segundo lugar, conseguir também ser a voz dos “grandes deserdados do mundo”, aqueles que pertencem ao ironicamente batizado de Terceiro Mundo. E para declarar, embora não consiga fazê-los entender, os motivos da nossa revolta.”

“Queremos ser herdeiros de todas as revoluções do mundo, de todas as lutas de libertação dos povos do Terceiro Mundo.”

Pausa. Blecaute. Somente a  vela ilumina o crânio do assassino.

Sobre o golpe de Estado de 1987. A viúva, Mariam Sankara, ainda espera justiça. Foram feitos testes de DNA aos restos mortais  de Sankara, mas estes não foram, alegadamente, conclusivos. Foi emitido um mandado de captura internacional contra o antigo Presidente do país Blaise Compaoré, que agora vive no exílio. Foram feitos vários pedidos de acesso aos arquivos franceses, para se tentar apurar se a antiga força colonial terá estado envolvida na sua morte.

Pausa.

Tal como Patrice Lumumba, Amílcar Cabral ou Nelson Mandela, Thomas Sankara realizou profundas reformas na saúde, na educação e agricultura de seu  país. Promoveu a produção local e o consumo interno, dando ele próprio o exemplo ao usar algodão fabricado no país.

Pausa.

Sankara a poucos minutos de seu assassinato

Quem assassinou Sankara?

Apesar dos mais desfavorecidos estarem sempre na lista de prioridades de Sankara, ele nem sempre os conseguiu defender. A revolução é uma marcha forçada, mesmo para aqueles que o Presidente diz querer proteger. (…) Os Comités para a Defesa da Revolução eram outra preocupação do capitão, já que atuavam como milícias e atacavam os sindicatos. Era incômodo para alguns companheiros de luta.

Pausa.

Em 15 de outubro de 1987, um dos seus amigos mais próximos, Blaise Compaoré, assumiu o poder e manteve-se no comando do país durante 27 anos, até 2014.

Para Bruno Jaffré, biógrafo de Thomas Sankara, não há dúvidas sobre o envolvimento de Campaoré na morte de Thomas Sankara. Jaffré considera “bastante óbvio” o envolvimento de Compaoré.

“Os homens que mataram Sankara respondiam a Gilbert Diendéré, que era chefe de segurança e se tornou o braço direito de Blaise Compaoré durante toda a sua presidência”.

Muitos dos jovens que derrubaram o regime de Blaise Compaoré reivindicaram o legado de Sankara. Três anos depois, iniciou-se uma campanha de angariação de fundos para construir um memorial dedicado ao líder da revolução do Burkina Faso.

Uma escultura dos buras, o karadeku, representando um morto de fome, é hoje um símbolo nacional burkinense.

Burkina 1987 coup.jpg

Gongo. Blecaute. A vela ainda acesa.

“O escravizado que não é capaz de assumir a sua rebelião não merece que tenhamos pena dele. Este escravo será o único responsável pela sua desgraça se ele se iludir sobre a condescendência de um mestre que afirma libertá-lo. Apenas a luta pode ser livre”.

Gongo.

Uma metralhada.

Um último artista:

“Água potável para muitos ou champanhe para poucos.” Sankara. Pense no que significa isso para a humanidade.

Outra metralhada. Um ator apaga a vela.

Pano.

(*)

Fonte – Ialia Oggi, jornal de direita –  https://www.italiaoggi.it/news/la-francia-controlla-deruba-e-impoverisce-14-stati-africani-2292284

(**)Fontes https://www.youtube.com/watch?v=3OODyFTCDaU

África como você nunca viu.

https://www.dw.com/pt-002/ra%C3%ADzes-africanas-retrata-personalidades-marcantes-da-hist%C3%B3ria-de-%C3%A1frica/a-42117730

raízes africanas. DW

O projeto “Raízes Africanas” é financiado pela Fundação Gerda Henkel.

https://www.dw.com/pt-002/thomas-sankara-o-l%C3%ADder-vision%C3%A1rio/a-41780185