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Monólogos da Caveira I

Publicado em: 09/08/2021 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.55

I –- A Rainha Cristina

Um cenário beckettiano. Uma árvore seca. Das névoas cinzentas da fumaça cênica, entra uma personagem que carrega uma cópia bidimensional e reproduzida do sarcófago vaticano da Rainha Cristina de Suécia. Tem a aparência dress coder. Veste uma peruca masculina do século XVI francês. Veste uma máscara médica com caveira estampada. Carrega um crânio na mão esquerda, que terá voz ventríloqua.

Cristina:

Para afirmar coisas ditas aqui não basta uma vida inteira de estudos e a disposição a enfrentar o assassinato; basta um monologo. O primeiro monólogo da caveira.

Pausa.

Pela a teoria do direito divino, o governante presta contas somente a deus pelos seus atos.

Pausa.

Fui de Suécia, como o meu colega francês Luís foi do Sol. Eu não aguentava ignorância e queria, sim, mais poder. Transformei a minha corte numa Atenas do Norte. Chamei os maiores intelectuais de meu tempo.

Pausa.

Abdiquei. Acabei com a minha dinastia e pus no trono um primo inelegível.

Pausa.

Somente Deus – e o Papa – podem fazer o que Napoleão fez dele mesmo.

Pausa.

Eu fiz antes. Acabei com conversa de se ler e interpretar a bíblia como quiser. Sem nem saber latim.

Veste a sua peruca masculina. [de seda branca]

Virei a musa da Contrarreforma. Houve trinta ou mais anos de guerra dos por causa disso. A guerra da Mãe Coragem, do Brecht. Era o Massimo que uma mulher podia fazer na profissão: vender a filharada na guerra. Eu já era vista como a “homem” da família, fiz o que fiz, menos aquilo. Se era para transar com homem, peguei só cardeal poderosos, tentei reinar nas Duas Sicílias.

Pausa.

Aquele reino que deu uma imperatriz ao longínquo Brasil, a Teresa Cristina, a mãe da Princesa Isabel, dois séculos depois. Ali tentam ter uma rainha branca até hoje.

Pausa.

Sou musa – da Contrarreforma. Para ser musa, pode até ser analfabeta, mas tem que saber pensar. Como eu: caveira pensante.

Pausa.

Hoje, tenho saudade de meu antigo cérebro.

Retira a peruca.

Que a misericórdia divina, por direito do Criador, conceda-me vênia para confessar… que recebi o nome de Cristina sob o desejo de chamar-me Cristiano, que nasci num corpo feminino desejando ser corpo masculino, que atuei para sair do reino de Suécia o mais rápido possível e ser chamada para melhor lugar.

Pausa.

Vizinha ao representante infalível do Salvador de nossa espécie, tendo o privilégio de indulgencias tais para não seremos julgados pelo Anjo da Morte.
Recoloca a peruca.

Quem é quem aqui?

A caveira é retirada de trás da imagem do sarcófago vaticano. Cristina acende um telefone. escreve. Depois, grava filmando-se com a caveira em mãos. Veste a máscara médica de caveira. Confunde quem fala, se ela ou caveira. Trata-se de um falso jogo teatral que beira a esquizofrenia.

Aqui é caveira. Sou atriz.

Pausa.

Atora.

Tira a máscara de caveira. Veste uma máscara preta. Ajeita o crânio na mão esquerda. A este e passa a dirigir as suas confissões.

Foi um inglês a imitar-me num ator que inventou essa estória de falar com caveira. Eu é que falo com caveira. Eu sou caveira.

Pausa.

Aqui é caveira.

Pausa.

Adoro meus olhos azuis; nada de cabelos e cores, isso é perda de tempo.

Joga ao chão maquiagens e pinceis. Escreve ao telefone. Bufa.

Quando quero por a palavra trans e este corretor escreve “transigiêicos”. Isso não é minha culpa.

Pausa.

Descabelada, de péssimo humor, rosto de tumba.

Pausa.

Boa noite e bom dia, nem sei mais o que é, deste sarcófago aqui do lado do Santo Padre, eu que me converti e abdiquei em favor do Carlos Gustavo.

Pausa. Olha para o crânio e o trata ora com um boneco de cabeça amorosa a quem se confessa, ora como uma feirante a um público de barraca.

Não sou bonita. Disseram-me “pequena, gorda e um pouco torta; que se veste de roxo, que usa gravata larga e peruca de homem; muito alegre, atitude livre demais”, que falo como um homem dentro de uma mesa branca.

A caveira toma a palavra a modo ventríloquo.

“O casamento desperta tanto medo em mim que ainda não sei quando poderei superá-lo”. E tem o horror do poder político, que para uma mulher pode ser exercido para mudar a história de verdade.” Tem mais: “É impossível para uma mulher cumprir dignamente os deveres do trono, quer ela governe por si mesma ou em nome de seu pupilo”. Isso sempre foi eivado em qualquer lugar. Eu não aceito isso. Ainda: “O casamento gera subordinação, não posso decidir quando serei capaz de superar esta repugnância”.

Pausa.

“Não posso suportar a idéia de ser usada por um homem da maneira como um fazendeiro usa seus campos”.

Relaxa a caveira. Põe-se em posição de confessionário enquanto ascende-lhe um cigarro na boca e oferece uma dose de cachaça.

Nasci criança incomum: sofrendo de uma hipertrofia clitoriana importante, o que deu, às parteiras reais, a impressão reais de que eu fosse um menino.

Pausa.

Calada, Caveira.

Pausa.

Mas meu pai ficou feliz quando nasci.

Enxuga uma lágrima da caveira com o seu imaculado lenço.

Ele ficou feliz por eu ser protestante ergo herdeira direta do trono. A “conotação masculina” foi um ponto forte. Ele disse isso… E ordenou me educarem-me com a qualidade que se dava aos meninos: “Ela pode, porque nos enganou a todos”.

Estapeia a caveira.

“Eles então se viram em grandes dificuldades quando perceberam que estavam equivocados e preocupados e não sabiam como confessar a verdade”.

Pausa.

Eu andava a cavalo, lutava esgrima, falava com veemência, não gostava de etiqueta e muito menos de vestidos vaporosos. Gente não se veste assim.

Pausa.

Dormia não mais do que cinco horas por noite. Era fluente em latim, sueco, francês, italiano, alemão, espanhol, grego e tinha conhecimento de hebraico e de árabe. Colecionava manuscritos e pinturas, estudava poesia e filosofia, Chamei Descartes para ter aulas de filosofia às cinco horas da manhã naquele gelo que é Estocolmo.

Pausa. Faz o sinal da cruz.

Não durou mais de quatro meses e morreu de pneumonia.

Faz o sinal da cruz.

A Companhia de Jesus facilitou a minha conversão. Foi a liberdade das obrigações monárquicas que me levou a escolher o catolicismo.

Pausa.

E a abdicar em favor de seu primo.

A caveira retoma a palavra.

“É impossível eu me casar, não pretendo explicar o porquê, mas é preciso saber que tenho horror ao casamento.”

Pausa.

Acabou com a dinastia pela única razão de se converter e morar no Palazzo Corsini numa pequena corte privada de intelectuais e artistas. Manteve o vicio do poder vivendo com o Cardeal Décio (*) quase como um casal, para manobras políticas em conclaves de três eleições papais.

Pausa. Ela faz o sinal da cruz e segue a sua confissão. Altera a aparente impassibilidade. Agita-se.

Tem outra verdade. Meu grande amor se chamava Ebba. Ficou na Suécia. Um amor louco. O meu amigo íntimo.

A caveira volta a falar.

A filha do conselheiro de Estado, “a bela condessa” que você chamava abertamente de “meu companheiro de cama”

Pausa. Ela faz o sinal da cruz. O ritmo torna-se concitado.

A caveira retoma a palavra.
“EU pertenço a você, você nunca pode me perder, só deixarei de amá-la quando eu morrer”.

Você escreveu isso para mim. Não foi? Não é verdade? Qual a verdade quando se tem o poder?

Ela retoma a palavra e grava ao telefone.
Isso. Qual verdade? Qual verdade quando o EU, o ar e o poder são a mesma coisa?

Horrorizada com o objeto-telefone, apoia-o com desprezo ao chão diante do crânio. Acende uma vela sobre a caveira. Faz o sinal da cruz. Sai.

Pano.

(*) Cardeal Decio Azzolino (1623-1689)

 

Ilustrações:
A rainha Christina, de dezesseis anos, da Suécia.
A rainha Christina (sentada à mesa à esquerda) discutindo com o filósofo francês Descartes (detalhe de uma pintura alegórica do século XIX), detalhe.
Celebrações em homenagem a Christina da Suécia no Palazzo Barberini – “O Carrossel dos Carrosséis”, pintado por Filippo Lauri. O evento foi realizado em 28 de fevereiro de 1656.
Christina da Suécia por Sébastien Bourdon, século XVII, Museu Nacional em Estocolmo.

Referências principais:

Canal do Professor Paulo Rezzutti
https//www.youtube.com/watch?v=gujmzKAlk
https://best5.it/post/cristina-di-svezia-la-regina-piu-originale-libertina-e-disinvolta-della-storia/
https//www.youtube.com/watch?v=gujmzKAlk
dessa vez os astros