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Monólogo da caveira VIII

Publicado em: 27/09/2021 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos, 100.62

Crônia, o crânio, o tango e o dramaturgista

Palco vazio com um crânio no centro, Entra Cadeirante-dramaturgista Carcamano, posta-se diante da caveira e acende um charuto.

Querida Crônia,
É terrível quando falham os controles da cadeira. É pior que nunca mais poder mover as pernas. Os nervos não mais enviam impulsos aos músculos, que ficam parados.

Pausa.

Uma vez cadeirante, a paz pode até vir por se saber que dali não se moverá facilmente até da existência – conformar-se e’ uma luta tremenda, mas apazigua. Mas quando falha a cadeira, quando tem um prosaico degrau…

Pausa.

Falar nisso é mais terrível ainda. As palavras são a realidade, e não o movimento. Ainda assim, são movimento. De pensamento, de língua, de memória, de revolta, de vida – mesmo que aparentemente se veja um corpo ali, parado, aparentemente inutilizado, a serviço de uma realidade gramática fragilizada ante alguma força incompreensivelmente trágica.

Pausa.

Tirânica.


,
Pausa. Fala mais perto de Crânia.

Sempre em silencio.

Pausa.

Conversar com Crânia é sempre agradável.

Pausa.

É um monólogo agudo ante o crânio.

Pausa.

Tem gente que nos assiste neste momento.

Pausa.

Teatro é o único lugar onde o que se vê ê exatamente o que acontece: alguém atua a ficção.

Pausa.

O real.

Pausa.

A existência.

Pausa.

Cantinho predileto.

Pausa.

Este corpo fenomenológico fala sozinho a corpos fenomenológicos.

Pausa.

Antes era em companhia, agora em live, sozinho.

Pausa.

Não sempre.

Pausa.

Sempre em silencio.

Oferece um charuto a Crânia.

Aceita?

Pausa.

Não?

Pausa.

Sim?

Pausa.

Eu acendo.

Acende dois charutos. Um coloca sob a mandíbula de Crânia. Fixa e um cinzeiro.

Cinzas.

Pausa.

Cinzas de Brecht. Disse Eugenio Barba.

Pausa.

Disse uma caveira.

Pausa.

Que medo.

Pausa.

Um inglês que disse que antes havia uma inteligência ali.

Pausa.

Charutos são vivos, dizem. Disse o Heiner. E o Fidel.

Toma em mãos o charuto da caveira.

Um bom charuto exige que o aspire. Senão, apaga. Morre.
Aspira! Anda!

Pausa.

Morreu. Sem que o aspirássemos.

Pausa.

Vamos de cigarro americano, com Virginia.

Pausa.

Mais 5.782 drogas.

Pausa.

Não apaga antes do fim.

Pausa.

Aceita?

Serve dois copos.

Pausa.

Eu acendo.

Acende dois cigarros Lucky Strike.

Como em Beverly Hills.

Pausa.

Casal.

Pausa,

Hoje, nem isso tem mais.

Apoia o cigarro sob a mandíbula de Crânia – do mesmo jeito do charuto. Espera cair a primeira cinza.

Assim não fico só.

Pausa.

Fala! fala! Perché non parla?

Atira-lhe um martelo, sem acertar. Pausa.

Disse aquele carcamano. Aquele da estatua do Moisés.

Pausa. Joga fora os cigarros. Coloca, muito baixinho, o tango “ Fumando Espero” (Fumar espero – Carlos Dante y Alfredo de Angelis – Carlos Gardel)”.

Ah. Gardel? Sarita?

Pausa.

Tá bom, tá bom, Sarita Montiel.

Canta a tradução – junto com Sarita Montiel.

[ Fumar es un placer, genial, sensual
Fumando espero a la que tanto quiero
Tras los cristales de alegres ventanales
Y mientras fumo mi vida no consumo
Porque flotando el humo me suelo adormecer

Tendido en mi sofá, fumar y amar
Verán mi amada feliz y enamorada
Sentir sus labios o besar con besos sabios
Y el devaneo sentir con más deseos
Cuando sus ojos veo sedientos de pasión

Por eso estando mi bien
Es mi fumar un edén
Dame el humo de tu boca
Dame que en mí, pasión provoca
Corre que quiero enloquecer de placer
Sintiendo ese calor del humo embriagador
Que acaba por prender
La llama ardiente del amor ]

Fumar é um prazer genial, sensual
Fumando eu espero por aquela que eu amo tanto
Atrás do vidro de janelas alegres
E enquanto eu fumo, minha vida não é consumida
Porque flutuando na fumaça eu geralmente adormeço

Deitado no meu sofá, fumando e amando
Você vai ver minha amada feliz e apaixonada
Sentindo seus lábios ou beijando com beijos sábios
E o namoro se sente com mais desejo
Quando seus olhos eu vejo sede de paixão

É por isso que ser meu bem
É meu fumar um Éden
Dê-me a fumaça de sua boca
Dê-me isso em mim, a paixão provoca
Correr que eu quero ficar louco de prazer
Sentindo aquele calor da fumaça intoxicante
Isso acaba por acender

A chama ardente do amor
Deixa tocar, baixo, cds de tangos. Serve dois copos.

Drury’s.

Pausa.

Meu pai detestava. Pega um da garrafinha de bolso. Ah… Melhor. Old Eight.

Oferece um gole ao crânio.

Toma. É melhorzinho. Estrangeiro nacionalizado.

Pausa. Ele espera uma reação de Crânia. Continua, desapontado.

Que coisa mais chata.

Ajeita câmara, enquadramento, crânio, cigarro. Continua.

Não dá para ver, mas estamos iguais. Corpos iguais.
Pausa.

Preciso da cadeira de rodas. E quando quebra a eletrônica, é como cair a rede.

Pausa.

É como a morte.

Pausa.

É como esquecer uma fala. Dar um branco total.

Pausa.

Tinha um filme e uma autobiografia em que isso era um pesadelo.
Não se sabe onde se vai parar. Não sabemos nada.

Pausa. Olha para o crânio. Aplica-lhe um beijo romântico.

Beijo de língua. Língua na caveira. Teatro.

Pausa.

Aqui ainda e’ teatro.

Ele apaga a vela. Apaga o tango “Fumando Espero”. Acende um abajur. Acende um cigarro diante de um abajur. Toca cambalache, cantado por Julio Sosa. Observa a fumaça. Ensaia timidamente com a sua cadeira um percurso do tango, exibindo-se para Crânia, traduzindo a letra à meia voz.

Cambalache -letra

El mundo fue y será una porquería, ya lo sé
En el quinientos seis y en el dos mil también
Que siempre ha habido chorros
Maquiávelos y estafáos’
Contentos y amargaos, valores y dublé
Pero que el siglo veinte es un despliegue
De maldá’ insolente ya no hay quien lo niegue
Vivimos revolcaos en un merengue
Y en el mismo lodo todos manoseaos

Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor
Ignorante, sabio, chorro, generoso, estafador
Todo es igual, nada es mejor
Lo mismo un burro que un gran profesor!
No hay aplazaos ni escalafón
Los inmorales nos han iguala’o
Si uno vive en la impostura
Y otro roba en su ambición
Da lo mismo que sea cura
Colchonero, rey de bastos
Caradura o polizón

¡Qué falta de respeto, qué atropello a la razón!
¡Cualquiera es un señor, cualquiera es un ladrón!
Mezclao’ con Stavisky van Don Bosco y La Mignon
Don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín
Igual que en la vidriera irrespetuosa
De los cambalaches se ha mezclao’ la vida
Y herida por un sable sin remache
Ve llorar la Biblia contra un bandoneón

Siglo veinte, cambalache, problemático y febril
El que no llora no mama y el que no afana es un gil
Dale nomás, dale que va
Que allá en el horno nos vamo’ a encontrar
No pienses más, sentate a un lao’
Que a nadie importa si naciste honrao’
Es lo mismo el que labura
Noche y día como un buey
Que el que vive de los otros
Que el que mata o el que cura
O está fuera de la ley

Dramaturgista Carcamano traduz cantando a meia voz.

Cambalacho
Que o mundo foi e será uma porcaria, eu já sei
Em 506 e no ano 2000 também
Que sempre houve ladrões
Astutos e enganados
Felizes e amargurados, valores e morais
Mas que o século XX é uma exposição
De maldade insolente, já não há quem negue
Vivemos misturados em um merengue
E na mesma lama todos manuseados

Hoje acontece que é o mesmo ser correto ou traidor
Ignorante, sábio, mão-leve, generoso, vigarista
Tudo é igual, nada é diferente
Dá no mesmo burro ou um grande professor!
Sem repetentes nem hierarquia
Os imorais nos igualaram
Se alguém vive na impostura
E outro rouba em sua ambição
Dá na mesma que seja padre
Preguiçoso, capanga
Cara-de-pau ou vagabundo

Que falta de respeito, que afronta à razão!
Qualquer um é um cavalheiro, qualquer um é ladrão!
Misturados com Stavisky, vão Dom Bosco e La Mignon
Don Chicho e Napoleão, Carnera e San Martín
Assim como na vitrine desrespeitosa
Dos cambalachos, se misturou a vida
E ferido por uma espada sem rebites
Se vê chorar a Bíblia no bandoneon

Século XX, cambalacho, problemático e febril
Quem não chora, não mama e quem não rouba é um tolo
Dá-lhe apenas, dá-lhe que vai
Que lá no forno, nós vamos encontrar!
Não penses mais, sente-se ao lado
Que ninguém se importa se você nasceu honrado!
Se é o mesmo quem trabalha
Dia e noite como um pé de boi
Que quem vive dos outros
Que mata ou cura
Ou está fora da lei

Teatro chique.

Pausa.

Tem um zumbido na minha orelha. Tem alguém pensando em mim.

Voz em off: Seu velho. Você sabe muito bem que jamais pensam em você; Isso é mera hipertensão, pressão baixa, otite, aterosclerose. Ou a morte chamando.

Dramaturgista Carcamano (A Crônia):

 

De morta já tem você aqui! Eu tenho um corpo só de cadeirante. Fenomenológico.

Pausa.

Você é que não passa de uma decrepita caveira dinamarquesa que, de tanto princípio, nem consegue falar.

Pausa.

Caveira inglesa.

Voz em off: Cale-se. Todas as respostas estão no papiro da vida.

Cadeirante-dramaturgista Carcamano:

Mas o quê é isso? Há um deus ex machina aqui?

Voz em off: Nem deus nem muito menos ex machina. Sou o pequeno cenógrafo. Parem de ofender o teatro. Tudo se afina afrouxando a meia longa sobre vocês. Assim vossas rusgas ficarão invisíveis como os primeiros dançarinos do tango argentino, que eram pretos, dançavam de ladinho com pês arrastados no chão. Gente mais velha. Curtam agora os efeitos da corda meia longa da vara americana. E as imagens de tango estilo canyengue.

Silêncio. Uma criança abaixa o pano lentissimamente, meio descompensado. Projeta um filmezinho de tango canyengue dançado por idosos.

Voz em off: E nada deus ex machina. De termos gregos, inúteis por enquanto. Sou fofo. Fim.

Blecaute.

https://www.youtube.com/watch?v=T0kTiKCC3UI
https://www.youtube.com/watch?v=daQJZXKoUj8

ilustrações

“2001: Uma Odisséia no Espaço” de Stanley Kubrick – ‘Dan’ Richter na sequencia do alvorecer da humanidade
O letrista Enrique Discépolo.
Imagens do autor, da net, do filme tango negro