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Memória em Progresso e Liberdade de Expressão

Publicado em: 15/08/2023 |

Chá e Cadernos 200.6

Mauri Paroni

A SP Escola de Teatro opera sobre módulos. Segue o melhor modo artesanal de praticamente todas as geografias e histórias teatrais: prova-se no palco, na praça, no picadeiro, no tapetinho, no terreiro em que se aprende fazendo, no bem e no mal, no belo e no feio, no afinado e no desafinado, na crítica, na alegoria, na ação. Incentiva a não produzir um saber ou uma arte teatral celibatária e cuspidora de regras apriorísticas. Valoriza a epifania do experimento, da não prontidão. (Sobre o “pronto”, de um dos motes da SP, “não estar pronto”, eu diria que foi prática de um gênio como Leonardo da Vinci (1452-1519), o qual tendia a deixar abertos os seus projetos e desenhos).

Esse percurso coincide pedagogicamente com a aventura vivida pelo escritor francês Marcel Proust – a memória profunda que traz palavras à superfície, puxa a vida já vivida (portanto lembrada) e nela habitam pena, arte e criatividade. Coincidem a arte, a individualidade da experiência existencial e a memória incômoda da infância, elaborada pela psicologia e pela psicanálise. A vasta obra de Proust versa sempre sobre quem quer escrever mas “não sabe” exatamente onde vai parar. Saberá no decorrer da escrita, pois o assunto é a existência, o fluxo vital e a memória. Não é memorialista, é memória real da ficção. O exemplo mais citado é o do pãozinho embebido no chá de tília que traz a infância passada ao presente do autor;

“E assim que reconheci o sabor do pedaço de madeleine mergulhado no chá que minha tia costumava me dar (embora eu ainda não soubesse e tivesse que adiar para muito mais tarde a descoberta do motivo pelo qual essa lembrança me deixava tão feliz), a velha casa cinza da rua, onde ficava o quarto dela, imediatamente se destacou como um palco montado contra o pequeno pavilhão, com vista para o jardim, que havia sido construído para meus pais na parte de trás (aquela seção truncada que só eu tinha visto novamente até então); E, com a casa, a cidade, de manhã à noite sob qualquer clima, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde eu fazia compras, os caminhos que tomávamos quando o tempo estava bom. E assim como naquele jogo em que os japoneses se divertem mergulhando pequenos pedaços de papel, até então indistintos, em uma tigela de porcelana cheia de água, assim que são mergulhados, eles se esticam, se curvam, se colorem, se diferenciam, se tornam flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores em nosso jardim e as do parque de M. Swann, e as ninfas no jardim, são como as flores do jardim de M. Swann. Swann, e os nenúfares no Vivonne, e as boas pessoas da aldeia e suas pequenas casas e a igreja e toda a Combray e seus arredores, tudo o que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá.”

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann.

Meio mal traduzido, meio impossível para eu traduzir, este “biscoito fino” vai também no original; perdão pelo esnobismo, mas francófonos costumam ser exigentes – e não vou levar essa culpa pro túmulo.

[Et dès que j’eus reconnu le goût du morceau de madeleine trempé dans le tilleul que me donnait ma tante (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre à bien plus tard de découvrir pourquoi ce souvenir me rendait si heureux), aussitôt la vieille maison grise sur la rue, où était sa chambre, vint comme un décor de théâtre s’appliquer au petit pavillon, donnant sur le jardin, qu’on avait construit pour mes parents sur ses derrières (ce pan tronqué que seul j’avais revu jusque-là) ; et avec la maison, la ville, depuis le matin jusqu’au soir et par tous les temps, la Place où on m’envoyait avant déjeuner, les rues où, j’allais faire des courses, les chemins qu’on prenait si le temps était beau. Et comme dans ce jeu où les Japonais s’amusent à tremper dans un bol de porcelaine rempli d’eau, de petits morceaux de papier jusque-là indistincts qui, à peine y sont-ils plongés s’étirent, se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des fleurs, des maisons, des personnages consistants et reconnaissables, de même maintenant toutes les fleurs de notre jardin et celles du parc de M. Swann, et les nymphéas de la Vivonne, et les bonnes gens du village et leurs petits logis et l’église et tout Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité, est sorti, ville et jardins, de ma tasse de thé. ]

***

Quem lê este texto prove a lembrar-se de alguma aventura infantil involuntária que decreta no AGORA uma emoção vivida AGORA pelo próprio ato de lembrar. Cada um o seu. (…). Lembrei-me AGORA do que pode dizer o “não estar pronto”. E de que o “pronto” que ouvia na infância, quanto ao telefone, não era à visão, mas à imaginada aparência da “telefonista” do outro lado da linha – um encantamento proustiano que pode ser estendido a uma intuição africana, ameríndia, aborígene, infantil.

Objeto ironicamente improvável, o celular quase não mais funciona nos sons das palavras – poucas, rasas, desarmonizadas – mas traz fotos de rostos numa pletora infinita e incerta. Um telefone diferente era aquele antigo. Falo da voz da memória, de suas expressões, de seus silêncios. Falo da presença da ausência. Falo da lembrança perdida; em vez de “alô”, ouvia “pronto”, na memória. “Pronto” era o que dizia a operadora telefônica quando se completava uma ligação, dependendo do lugar, até 1970. Pelo que me lembro, era assim.

– Pronto.

– Alô, senhorita.

– Alô.

– Senhorita, pode ligar 35798? Sim, o senhor Nicolau Trabulsi.

– Pronto.

– Alô. Nicolau?

Na minha primeira infância, o aparelho de baquelite era chumbado na parede, e se conversava em pé, num ato importante do dia-a-dia. Os números eram relativamente poucos, anotados numa pequena caderneta pendurada com um barbante e um lápis. E se dizia sempre essa palavra, “senhorita”. Eu nem sabia o que era – parecia fosse uma maga, um anjo, algo importante. Era. Uma caríssima tia-avó explicou-me que se tratava de um quem, e não de um que. Tratava-se de uma pessoa. Quase sempre uma mulher jovem que ligava fios, que auxiliava a comunicação, discretamente a auscultar a conversação. Que punha ordem no quotidiano de centenas, senão de milhões de pessoas. A alma daquele aparelho.

Alma. Soul. Como o gênero musical, como a genialidade de Nina Simone ou de Tim Maia, ela tecia a vida em ondas sonoras pospostas a rádios e telégrafos que podiam transmitir um S.O.S. – save our souls. Souls, na navegação marítima não designa somente alma, mas vida, no sentido de pessoa. Telefonistas operavam, por fios e tomadas, almas que se ligavam. Importante: a partir de 1920 percebeu-se que mulheres eram muito mais adequadas a esse dificílimo trabalho. Gentis, precisas, rápidas, inteligentes. Gente, que desaparece diante da função assustadora do telefone celular, numa reprodução de sentidos que pode facilmente fraudar qualquer linguagem humana.

De resto, o telefone teve sua patente fraudada logo de cara. Não foi invenção de Graham Bell (1847-1922), inventor e fonoaudiólogo britânico, naturalizado estadunidense, fundador da Bell Telephone Company, empresa que estabeleceu contatos industriais e bases para o uso do aparelho. O real inventor deste foi o cenógrafo italiano Antonio Meucci (1808-1889), emigrado em Cuba e depois nos Estados Unidos, que construiu um telefone eletromagnético – telettrofono – para conectar seu escritório ao quarto onde permanecia sua esposa convalescente de reumatismo. O Congresso dos Estados Unidos corrigiu o reconhecimento da invenção do telefone somente em 2002.

***

Campainhas. Senhas. Procura de pessoas. Tinders. Fotos. Olhos baixos. Costas curvadas na caminhada. Alienação do Élan vital. Isso são os celulares empregados no fluxo quotidiano. Nunca se está preparado, “pronto” para esses aparelhos porque não se trata de tecnologia, mas da mentalidade usada no desfrutamento do meio, por mais que se tenha juízo. Mas quem trabalha nos palcos pode facilmente superar tais referências. A desinformação é imensa e crescente, mas não se creia seja um problema da tecnologia em si. É um problema das “souls”, cultural. Educacional. Da cultura, do que ”se colhe”, como diz a filosofa Marilena Chauí ao explicar o que é cultura democrática.

***

– Senhorita

Fios coligados.

– Pronto.

– Nicolau?

– Tu, tu; tu, tu; tu, tu…

– Ocupado.

***

Os diálogos teatrais tinham a racionalidade da carne e do osso. Hoje , onde estariam a carne e o osso? As falhas eventuais das ligações dos fios resultavam na “linha cruzada”. Para quem não a conheceu: pessoas que jamais tiveram contato acasalavam inadvertidamente seus diálogos. Ocorria confusões, muitas cômicas, outras agressivas. Gerava-se anedotas, ofensas, trolagens, brincadeiras, confissões, coincidências terríveis, dependendo do tamanho da cidade e do alcance geográfico das linhas. Alimentaria roteiros para Almodóvar e Buñuel. Ou trechos teatrais de Ionesco. A realidade era surreal e a telefonista, que tudo ouvia, virava uma espectadora privilegiada. Sobretudo, acontecia o fato semiótico que Proust descreveu: a voz soava em desparte do rosto, da boca, e ia diretamente para a decodificação na cabeça do narrarratário – quem ouvia. Hoje, esse é o que realmente ocorre na mente de quem dialoga. Rostos e individualidades separam-se das palavras proferidas, adquirem vida própria. Gente e palco não podem ignorar isso, escolas de palco também não. Quem tem um celular transita sob império da pós verdade e do empoderamento do falso, do assassinato da democracia e da sua consequente liberdade. Todo cuidado é pouco. A memória colhe a diferença para a liberdade. Igualitário da diferença, Proust foi além da própria genialidade.

– Pronto.