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Memória (IV) Pantagruélica

Publicado em: 07/07/2023 |

Cabeçalho com o escrito "Chá e Cadernos" e abaixo uma xícara de chá.

Chá e Cadernos 200.3
Mauri Paroni

François Rabelais (1494-1553), ex-monge beneditino, médico cirurgião dissecador de cadáveres, irreverente, escreveu “Garganta e Pantagruel” sob pseudônimo – Alcofribas Nasier. Vendeu mais que a Bíblia, para desespero dos censores eclesiásticos farejadores na Universidade de Sorbonne (Paris). Diz-se que chegou a contar estórias para aliviar as dores de dente do mecenas e do rei de França, Francisco I (1494-1547). Inimigo de superstições, preconizava um sistema educacional livre da Igreja. Sua irreverência popular, culta e carnavalesca inspirou o nosso espetáculo quase homônimo produzido na Itália em 1996 – chegou a ser apresentado em São Paulo. Vale a pena aprofundar-se através do esteta russo – livre, também – Mikhail Bakhtin in (1895-1975). Vivi lição e memória na versão de viagem de Pantagruel, Panurgo e la Canga – uma ideia inicial de Renato Gabrielli, com texto meu, de Michela Marelli e Claudia Botta, com participação do elenco; cenografia e figurinos de Claudia, vídeos Riccardo Paoletti e Laura Trevisan. (*) (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq28109813.htm )

Fotografia colorida do momento da turnê paulista de "Pantagruele"

Momento da turnê paulista de “Pantagruele”, de Mauri Paroni | Foto: Divulgação

Quem veio nos ver naquela São Paulo de 1998 esperava o clichê de uma comédia italiana. A comicidade era, sim, italiana, mas muito além de tal clichê. Era feita de severas alegorias. Mais tarde, meu modo de fazer teatro passou constantemente pelo espaço dos Satyros, Praça Roosevelt. Ou lá renasceu. Seja dito, foi privilegiado por um micro-contexto raro naqueles anos subjugados pelo mau costume de usar teatros aromatizados a Pinho Ar para gente “bonita” na plateia (vai saber que beleza seria essa).
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“Garganta e Pantagruel” tem os seus momentos mais acessíveis quando alterna citações cultas da antiguidade à realidade popular de sua época – 1490 em diante. Pestes, navegações, colonialismo, guerras e bloqueios comerciais, reformas religiosas, avanço exponencial do conhecimento científico, imprensa, dissecação de cadáveres e redesenho da anatomia. Intervenções físicas e revalorização do corpo humano. Úteros (estéreis), por exemplo.

Fotografia colorida do Teatro anatômico de Pádua

Teatro anatômico de Pádua construção em madeira do Século XVI Arquitetos Paolo Sarpi e Dario Varotari Kalibos. Disponível em Wikipédia em italiano | Foto: Marco Bisello

O trecho abaixo, por nós diretamente inspirado na visão uterina de Rabelais, também está fundado na visão física de Ambroise Paré (1510-1590). Traz divertidas conclusões de como o saber gera palco e sociedade mais avançados culturalmente. A justificar a inserção a esta edição está o ditado popular italiano “tutto il mondo è paese” = todos os lugares se assemelham. Durante uma apresentação na cidade provinciana de Soresina, Itália, os técnicos amadores do seu Teatro Sociale assistiam a vídeos pornográficos nas coxias. O crítico local, jovem, percebeu o fato e o aludiu em seu texto, que não foi publicado e ocasionou a sua injusta demissão do moralizante jornal da província. Revoltado, mudou-se da cidade, entregou-nos os seus originais (que extraviei em outras andanças).

Mas vamos ao texto representado na peça – era sobre o pecado original:

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Fotografia preta e branca de Paola Baldini interpreta a alegoria da Risata

Paola Baldini interpreta a alegoria da Risata | Foto: Divulgação

Alegoria da Risada

“PROSELICTZ: O fato de serem não apenas longos, mas também grandes, depende de que, durante os golpes, o suor do corpo desce para o membro. De modo que, de acordo com os filósofos, os tremores contínuos (soa a buzina) são causas de atração.

CORO DE FARISEUS e AKBULK: Pekkat, pekkat, pekkat, pekkat, pekkat!

A Risada Uterina: [Ao me surpreenderem admirando atos pecaminosos] Vocês não apenas me cegaram, mas também persistem em não entender que pecar com moderação causa prazer imoderado. Eu afirmo que o pecado é prazer e sorrio sempre. Vocês pregam que o prazer é pecado e acabam chorando num coro de injuriadores. (A Akbulk) Você é perigoso: as pessoas hoje o seguem e têm vergonha de defecar. Elas têm medo do mau cheiro. Como resultado, elas se perfumam tanto para ir comer que não sentem mais o gosto da comida. Onde vamos parar com essas remoções? (…) O sábio Alcofribas previu isso em um de seus pergaminhos. (Ela abre um pergaminho ao som de um órgão apocalíptico. Pausa) No próximo inverno, sem esperar mais deste mundo e não do outro, surgirão homens sedentos de bem-estar, paz e descanso. Que, em plena luz do dia, agitarão todos os tipos de pessoas, especialmente o povo, fomentando a discórdia. (Um vídeo projeta no ciclorama os corpos nus de todo o elenco, som do Órgão apocalíptico em volume máximo.) As pessoas vos seguirão, pois consumirão sem gozar, sem pensar no mal que poderá advir disso. Elas terão vergonha de suas necessidades fisiológicas porque, num mundo mostrado por engenhocas filmadas, o cocô não existe. Em nome da liberdade, eles brincarão de infernizar uns aos outros longe do cavalo do dinheiro. Esses desejos e ambições desenfreados não darão autoridade àqueles que professam a verdade, pois todos eles seguirão, como ovelhas, os vulgares, (Ela aponta para o vídeo): assim, os mais tolos serão chamados para decidir (pausa) Qual ordem será seguida? E que descanso será concedido ao corpo da máquina infalível? (aponta para a TV que atravessa o palco com imagens de cabeças derretendo enquanto assistem a publicidade variada). O mal será honrado até mesmo quando estiver comendo, de modo que as pessoas logo serão reduzidas a uma condição tão triste que dissolverá seus corações. Então, o momento bom e propício para pôr fim a essa terrível canga terá chegado com a grande explosão do vício. Os eleitos serão refeitos e os demais despojados de tudo. Esse é o acordo, e muita honra será dada àquele que perseverou até o fim: ele será o herdeiro da memória do grande Pantagruel. (O toque do órgão é um axé e a risada já está vestida com uma fantasia carnavalesca de “úterovamp” (O vídeo pausa e aparecem manchas obsessivas de desinfetante líquido.)

ANESIO: (muito assustado) Heresia, você fala como uma feiticeira! Pekkat! (Ele se flagela, em um último ímpeto de coragem) Para mim, os desordeiros de que você fala são necessários. E meus poucos bens conquistados em anos de trabalho honesto, incorrupto e suado, onde você os coloca? Não quero ir para uma guerra. Pekkat.”

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Cartaz de divulgação de "Pantagruele"

Cartaz de divulgação de “Pantagruele”

Nunca deixei de pensar este texto e encenação ao especular que Rabelais era contemporâneo da realização dos teatros fechados e fixos. O centro disso foi o Norte da Itália, onde atuavam textos escritos sistematicamente apresentados e fingidos como falas. Os principais teatros de prosa literária para uma corte privada foram construídos ali. Retirados das praças, cenários de fingidas praças, obtiveram credibilidade somente pela fragmentação do público em ambiente fechado. Note-se que eram contemporâneos aos teatros de anatomia; que, na prática, eram performances de dissecação de cadáveres. Nos teatros “literários” também havia exposição de corpos e vozes, mas as luzes eram construídas, representavam um lugar e unidade fictícios. Embora pouco se pense nisso, as duas formas eram expressividade de teatro ficcional e real, se quisermos ver um pouco mais radicalmente. Não é possível um teatro digno do nome sem professar esses dois saberes contemporaneamente. – que são a melhor escola possível. Mas esse é assunto para um próximo artigo.

Fotografia colorida do Teatro Social de Soresina

Teatro Social de Soresina | Foto: Divulgação

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(*)Elenco – Paola Bardini, Tommaso Ragno, Gaetano d‘Amico, Aram Kian, Alfonso Postiglione, Giovanni Franzoni, Giovanna De Toni, Silvano Melia, Mauricio Paroni, Livio Tassan, Roberto. Sbaratto,Bruno Sciuto, Massimo Sabet, Kenji Suguimoto, Laura Elli, Ambra Redina, Giampaolo Köhler, Musica Diego Ruvidoti.