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Memória crítica de uma falida conversação

Publicado em: 26/07/2023 |

Cabeçalho com o escrito "Chá e Cadernos" e abaixo uma xícara de chá.

Cabeçalho da coluna “Chá e Cadernos” de Mauri Paroni

Chá e Cadernos 200.5
Mauri Paroni

Chega-se a cenas improváveis: tento engajar um diálogo em meio à visão do meu interlocutor fulminado pela telinha do seu celular; deste soa uma dessas musiquinhas infames de TikTok, ChatGPT ou sei lá qual aplicativo. Segue-se um silêncio interrompido por uma chamada telefônica. Nasce um olhar levemente raivoso – eu o teria desconcentrado da tela. Mas por que alguém fulmina-se com uma tela que se apresenta como telefone mas talvez seja a última função do aparelho – caro – que tem substituído afetos, atenção, educação, ethos? Numa decadente abordagem do trato social que se repete onde quer que se vá… Se houver humanidade ou qualquer relação social dramatizada, mesmo que rota, a pessoa irá se deprimir-se, irá temer perder seu interlocutor enquanto outro de si. Terá medo de se aniquilar, terá raiva.

Retornará ao prazer de si mesmo, não resolverá a relativa angústia; será violenta, mal educada, bruta e destruidora de si. Inútil seria qualquer afeto. O que vira corriqueiro e social, de norma, vira gente conversando com a cabeça inclinada à tela, distraída, falando sozinha. Tudo cotidiano, tranquilo, cool, sem cinza a la Breaking the Wall. Tudo limpinho, banal, fluido. Tudo tipo facada-no-candidato-elege-improvável-Presidente-via-celular. Tudo violência milk shake shake shake.

***

O historiador (liberal, filho de esquerdistas, ateus e ricos) Indro Montanelli declarava que, na Roma de Júlio César, qualquer alta ceia tinha um menu de conversação. Na noite anterior ao seu assassinato, conversaram sobre “Qual morte preferes viver ao teu fim?”. Estava presente o traidor Brutus. O qual, sabedor do que sabia, empregou o bom trato social da elite dirigente à qual pertencia. Mas aqui nos interessa a progressão da linguagem das horas, dos séculos. O tal trato, aquela conversa, em horas virou sangue político, em meses virou Império, em séculos virou tiranias, tragédia para Shakespeare, cinema para Marlon Brando. Da mesma forma, porém paupérrima, hoje o celular e a gramática impostos pelo consumismo e pragmatismo acrítico viram um mal irrecusado. Viram um assunto “malafaio”, viram um desgraçado atraso coletivo.

Esse é o pesadelo onírico que mais tenho. Este, o pesadelo real; virei um ser cadeirante. Para ter certeza disso quando acordo, para poder lutar por um sonho, forço movimentos com as pernas a fim de constatar não conseguir executar a ordem neural. Então, experimento o Absurdo. Assim inicio o dia com a luta concreta ante o abstrato. Digo, comparo com a memória que tive da vida pouquíssimo tempo atrás. É o começo da resolução do problema.

Esse foi o problema, que se resolve.

Foto preta e branca para a coluna 200.5 de Mauri Paroni

Sobra, então, o resto: o silêncio e o que pode ser eterno. Mas o que é eterno se desenvolve no movimento conduzido pelo tempo. Tudo o que não se deixa conduzir acaba por se desagregar. Sem condução, desagrega-se qualquer expressão, qualquer fala, qualquer pausa, qualquer sequência, qualquer plano. Uso, profissional e existencialmente, este modo para avaliar a qualidade de uma obra; foi o que aprendi no teatro. Depois, no cinema, ao lidar concretamente com negativos de filmes, nas câmaras e laboratórios, nos anos 80 e 90 do século passado. Hoje, os telefones viraram câmaras sem negativos. Embora alguns programas ou aplicativos exijam regulação de FPS (fotogramas ao segundo), não há a obrigatória gramática correspondente. O mesmo se dá com as RPMs de discos de vinil (os velhos LP/compacto 33, 78). Para não mencionar os gramofones dos vinis. Há a regulagem nos apps atuais, certo, mas abstrata. Não é um diálogo “gramatical” entre a máquina – concreta – e a mente criativa – abstrata. Tendo, então, a exagerar que telefones celulares e o vício neles acabam por virar obra demoníaca. Tem-se discutido sobre a dependência da IA, mas esse problema sério, essa peste, está instalado faz anos nos dispositivos linguísticos e comunicativos… É como cancelar o Latim por ser “europeu” ou cassar o Nagô por ser “primitivo” ou o Tupi por ser “selvagem”. Não se cancela e basta; não se classifica superioridade e basta.

O que a dependência do celular e sua informação sem formação destroem para substituir a “velhice” assassina o Futuro enquanto progressão cultural ou crítica. Esta enquanto colheita e negação para se chegar a uma síntese que, sendo arte, será forçosamente passageira, mas radical e importante para o progresso. Prezando as tradições e a ancestralidade.

Foto de uma equação para a coluna 200.5 de Mauri Paroni

Por sorte, exercitava interações cognitivas com o mundo sem o saber. Isso salvou-me da depressão por lidar com as sequelas graves advindas da esclerose múltipla da qual sou portador… Sorte, acaso. Por exemplo, gostava de pensar em teoremas, de demonstrá-los e entendê-los; mas queriam que fossem decorados. Até os decorava, atraído por um estranho prazer (vai saber que tipo de loucura urde na inconsciência infantil). Demonstrá-los sempre me deu um gozo tremendamente alegre de chegar ao CQD (como queria-se demonstrar) de verdade – quando pensado – e fingindo – quando decorado… adorava saber como funcionava a fórmula de Bhaskara para resolver a equação de segundo grau. Era importante depois ir até meu colega filho de Sírios na carteira ao lado e dizia: tua terra faz coisa mais gostosa ainda que o quibe. Taí o guloso e material prazer da ciência descrito por Brecht em Vida de Galileo Galilei. Ainda bem que o demônio é, para mim, a metafísica do celular e não a metafísica dos fabricantes de anjos (*).

Foto do quadro La Faiseuse d’Anges

La Faiseuse d’Anges de Pedro Weingärtner

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(*) A composição La Faiseuse d’Anges (que na tradução literal significa “a fazedora de anjos”) é um tríptico do pintor brasileiro Pedro Weingärtner. Foi feita quando ele se encontrava em Roma, mas trazida depois ao Brasil, sendo exposta pela primeira vez na cidade de São Paulo, quando o artista ali realizou sua terceira exposição. A obra foi adquirida pelo governo local e doada à Pinacoteca do Estado.

Do site de Li Dias Camargo : https://virusdaarte.net/pedro-weingartner-la-faiseuse-danges/