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Meia dúzia de reflexões de outono…

Publicado em: 02/04/2012 |

1- Guia cultural – outono de 2012.

 

Os bons programas em São Paulo.

 

a – Good mood. Outono é a melhor época na cidade. Maio, o melhor mês. E está chegando! O céu é azulíssimo, a temperatura civilizada. As pessoas se vestem bem e dá vontade de abraçar todo mundo na rua. Seria ótimo se maio durasse pelo menos uns seis meses. Caminha-se pelas ruas sem trauma e sem transpirar. Poetas se enchem de inspiração e escrevem poemas. Pássaros cantam dependurados nas árvores peladas, chocando seus lindos ovinhos. Carteiros assoviam, sorrindo pelas calçadas e distribuindo cartas de amor. Noivas de maio provam vestidos e saltitam unidas rumo ao altar. Elefantes balem. Galinhas cacarejam. Sinos de igrejas badalam, etc. Tudo de bom!

 

Mas, nada é perfeito, e o deus não dá asas à cobra. Outono é o período em que mais gente acorre aos prontos-socorros com problemas respiratórios. A beleza da vista é tamanha que embriaga o sujeito. Espécie de Síndrome de Stendhal. O belo, como se sabe, é insalubre e pode intoxicar. O ar fica muito seco, a umidade relativa do ar cai a níveis preocupantes. As alergias respiratórias são afecções psicossomáticas sobre as quais a psicologia tem o que dizer. Trato desse assunto, porém, noutra oportunidade.

 

Pois aqui o foco é moda e etiqueta, o que também é cultura.

 

Parênteses: para poupar o leitor de ir ao dicionário. Wikipedia diz: Síndrome de Stendhal, síndrome da sobredose de beleza. É uma doença psicossomática bastante rara, caracterizada por aceleração do ritmo cardíaco, vertigens, falta de ar e mesmo alucinações, decorrentes do excesso de exposição do indivíduo a obras de arte, sobretudo em espaços fechados.

 

Essa síndrome parece uma licença poética! Não sabemos se existe, mas é interessante, não?

 

b – Sobre moda e estação, sigo a seguinte orientação, que recomendo: camadas.

 

‘Quatro estações no mesmo dia’, é o mote de São Paulo. Se você sai somente de camiseta, em maio, ao meio-dia, estará bem. Mas, cedo pela manhã, ou no fim da tarde, sentirá frio. Tarde da noite, muito frio. Se levar consigo apenas um casaco pesado, sentirá calor o dia inteiro e só estará adequado quando a temperatura cair bastante, já na madrugada. Por isso, indicamos: são quatro estações? Use quatro camadas leves [camiseta, camiseta de manga comprida, camisa, jaqueta]. Deste modo, você modula as camadas de acordo com a temperatura. A união faz a força. A soma das quatro camadas, juntas, combate a hora mais fria do dia, inclusive se por acaso nevar.

 

c – Programas culturais para a estação!

 

Se você já estiver bem vestido, conforme orientamos, há excelentes programações em São Paulo, especialmente na área da cultura. Há crepes ótimos na Sala São Paulo, por exemplo, paralelamente à música erudita, logo ali, ao lado da Cracolândia.

 

Há cinemas em que a fila é melhor que o filme. Teatros em que a fila é tão boa quanto a peça. Recomendamos a fila dos cinemas do Baixo Augusta. Recomendamos também a fila [e também as peças] de alguns teatros paulistanos alternativos da região central. Não cito nomes. Prefira o experimental ao comercial, prefira o artesanal à produção em série. Não esqueça a mais-valia. Fuja dela!

 

Antigamente, se a fila fosse boa, saía-se desses programas vespertinos e noturnos com os bolsos cheios de números de telefones e pedidos de contato. Nem se conseguia dar conta de tamanha demanda. Hoje em dia, isso já não ocorre, porque lápis e papel caíram em desuso.

 

Há outros espaços, como alguns museus, por exemplo, em que, apesar da fila não prestar, as obras expostas são de alta qualidade. Pena que nalguns outros, nem fila nem obras prestem. Esses são os casos que justificam o dito popular: ‘boa romaria faz, quem em casa fica em paz’.

 

Hoje em dia, pedindo pizza pelo telefone, pode-se ficar meses a fio sem sair de casa. Com milk-shake de chocolate e tv, programão!

 

Mas, falando sério, com livros, cachorro, computador, CDs, DVDs, amor e piano em casa, ir à rua pra quê? Pra arrumar confusão??

 

Há de tudo em São Paulo, essa é a conclusão: opções para cidadãos gregários e solitários; para o extrovertido e o tímido; o religioso e o agnóstico; o vegetariano e o mamífero; para todos os gostos, credos e inclinações. Nada falta na megalópole.

 

2 – Haicais ocidentalizados, verdades indiscutíveis [mas invisíveis a olho nu].

 

– quando estamos almoçando e, por infelicidade, mordemos a bochecha, imediatamente dá raiva da pessoa que está ao lado. Se ela estiver falando, pior. Fica confirmado que a culpa é dela. Ali, onde se come, não se fala.
– desconfie de conselhos amorosos. Mas se quiser palpite, prefira cueca/calcinha usados, vela, galinha preta e despacho.
– máxima sobre avião – atenção, nas viagens aéreas, há dois perigos: na decolagem e na queda!
– toda campanha de hoje contra o cigarro tem por motivação impedir que maridos abandonem suas esposas e lares, ao sair pra comprar cigarros.
– Glorinha Calil autorizou, pouco tempo atrás, que se corte com faca a folha do alface. Durmo tranquilo desde então.
– não leio hoje em dia: quando olho um texto, sem óculos, eu suponho, apenas.
– reza a lenda que Agatha Christie dizia: ‘a vantagem de ser casada com um arqueólogo é que, quanto mais velha fico, mais interessante pareço ao meu marido’.
– por que raios edifício tem nome?

 

 

3 – Sou contra muita coisa: a lista cresce e minha facilidade para fazer ex-amigos também.

 

Sou contra [dez coisas]:

 

– pessoas que dão solução rápida para qualquer problema que você estiver atravessando; apressar-se em oferecer solução é rejeição ao enorme pedaço confuso e sem sentido que cada pessoa carrega em si mesma; e que, via de regra, é a parte mais preciosa da pessoa. Custa muito ouvir em silêncio?;
– quem faz ‘hmm, hmm, hmm’, querendo sinalizar que está acompanhando o que estamos dizendo. Isso não se desculpa nem mesmo ao telefone, no qual, como se sabe, o ouvinte está fora do campo de visão do falante [e vice-versa]. Essa sonoplastia deveria ser banida por decreto-lei; sou contra também quem repete as últimas palavras que estamos falando, também para demonstrar que está prestando atenção. A ‘atenção’ não admite provas. Ela é silenciosa e soberana;
– pessoas que chamam empregada doméstica de ‘secretária do lar’… Fazem com que sintamos pena de ter nascido. Como se fosse um demérito ser empregada doméstica;
– quem fala alto no celular exibindo a conversa e não se afasta do grupo para falar privadamente com quer que esteja do outro lado da linha. Se for homem, certamente se acredita maldotado;
– quem conversa com secretária eletrônica, e faz perguntas, como se estivesse falando com o dono da casa. Em secretária eletrônica pode-se somente afirmar coisas. Ela não admite ponto de interrogação;
– homem que usa qualquer das seguintes metonímias: peruca, unha comprida, tintura para cabelo, esmalte incolor na unha [base];
– clima de ‘já-ganhou!’. Ouvi essa semana alguém da mídia dizer que o Brasil ‘não poderá perder a Copa em casa’. Também torço pelo Brasil. Mas ‘não pode’ perder? Porque não?? Achar que não pode perder já é um bom passo para o fracasso;
– quem pergunta ao final de um filme, os créditos ainda subindo na tela: ‘gostou? não gostou??’. Coisa ansiosa e invasiva! Tudo o que é fruído nas artes tem que passar por uma operação de metábole, processo de digestão simbólica. Nenhum ser humano pode saber se gostou ou não de um filme [peça de teatro, espetáculo de dança…] imediatamente após as luzes se acenderem. Às vezes pode levar 48 horas [ou semanas, ou anos…] até que o sujeito descubra o que pensa sobre determinado assunto, especialmente aquele do campo da estética;
– sou contra quem é a favor da ‘linha do tempo’ no facebook;
– sou contra serial killer.

 

4 – A vergonha.

 

Depois da segunda viagem internacional, brasileiros aprendem a evitar brasileiros no exterior. Geralmente, na primeira viagem, o turista brasileiro fica feliz ao encontrar patrícios em terras de além-mar. É um sentimento natural. Um som familiar no meio de uma multidão de estrangeiros. Língua materna! O sujeito sincero quer se enturmar, conferir identidades, partilhar impressões, desfrutar dessa familiaridade, celebrar o acaso. Mas, como a lagartixa que sabe que não deve engolir uma vespa, muito menos um marimbondo, o brasileiro viajante logo descobre que o silêncio é de ouro. Seu conterrâneo, lá fora, fala alto, joga lixo na rua, se acha rico, gargalha do que não tem graça, pensa que não está sendo visto, quer ‘causar’, se acha o tal, come de boca aberta, fura fila, é espaçoso e folgado, dá de esperto…

 

Tão violenta é essa experiência, que o viajante, já na viagem seguinte, ao avistar patrícios, finge ser um monge tibetano no Tibete, romano em Roma, parisiense em Paris, espanhol em Barcelona, holandês em Amsterdam, assim por diante. Depressa, o marinheiro de segunda viagem adota o anonimato [que é uma delícia] e a fantasia de incógnito, como se fora um espião russo. ‘Nem tuge nem muge’.

 

A vergonha, mais que o orgulho, revela a profunda identidade do sujeito com o grupo social, alvo justamente de seu constrangimento. A pessoa que se envergonha de um grupo pertence a ele mais do que desejaria. E o envergonhado sabe, no fundo, que carrega uma mesma raiz do sujeito que ele critica. Não fosse isso, não se importaria nem um pouco. Admissão dolorosa…

 

O orgulho evidentemente também aponta para os fenômenos de identificação. Orgulho pelo país que conquista uma medalha, por exemplo. Em excesso, porém, levanta suspeita de impostura. Aquele que deseja pertinência, mas sabe que ela não é legítima, é o que mais sente orgulho [pela Pátria, nesse caso]. A intensidade exagerada busca compensar o descompasso entre desejo e realidade.

 

Já a vergonha, na revelação da origem, não trai jamais.

 

5 – O ‘real’! 

 

Ficar com aqueles óculos 3D desengonçados já é um martírio. Como uma curiosidade, valeria. Uma vez na vida e olhe lá. A realidade do cinema 2D já é mais do que suficiente. Também sou contra apetrechos sexuais. São temperos que pretendem adicionar sabor a uma receita antiga e que já satisfaz. Mas, claro, não esquecer o livre arbítrio! Vivemos numa república de ‘gentes livres’. Cada um faz o que lhe apraz. O problema são as ditaduras.

Daqui a pouco não conseguiremos assistir ao velho e bom cinema, ou fazer o bom sexo em paz. Sem apetrechos.

 

Já estão lançando o cinema 4D. Pelo que li recentemente, tratam-se de esguichos e ventos que ‘dialogam’ com o espectador, borrifando a sua nuca. Palhaçada! Logo virão os odores pra fechar a equação. Quando, no filme, por exemplo, a câmera adentra um banheiro público, ao lado de sua poltrona no cinema, o bilheteiro começa a ralar nabo num pirex e cozinhar couve-flor numa panelinha. Para dar ‘realidade’ à ficção.

 

O problema é justamente esse desejo de realidade. O ‘real’ sempre foi tocado [e ultrapassado], na ficção, através de estratégias legítimas que nunca se resumiram à tática da recriação. Com pouco ou nenhum recurso, grandes artistas foram bem-sucedidos em apresentar e fazer aparecer diante do espectador uma nova realidade, desconcertante. A riqueza de técnica esconde a pobreza de espírito.

 

Marcel Marceau esteve no Teatro Municipal de São Paulo, nos anos 60 [1964? 1965?], e não me deixa mentir. Eu estava lá. Não havia cenário nem figurino – a não ser aquelas malhas brancas coladas que os mímicos usam e que se somam a seus rostos pintados também de branco. Era só ele, branco, o palco, a plateia e um silêncio monumental. Somente o seu talento em cena. Eu dormi, mas isto é outra história…

 

A grande novidade agora, veja só!, é a seguinte: nas ultrassonografias de mulheres grávidas, se o casal quiser, esculpe-se uma miniestátua. É o feto. Pequeno presente dado aos pais, para dar ‘realidade’ ao bebê que está por vir. Somente a mim isso parece o suprassumo do mau gosto?!

 

Virá o dia em que a ciência oferecerá um filho holográfico para o casal ir se entretendo. Virá o dia em que os pais se afeiçoarão tanto à escultura e à imagem holográfica que, quando o filho nascer realmente, preferirão a estátua e a imagem virtual ao filho de carne e osso, alegrando assim aqueles outros sujeitos que aguardam adoção. Será a Síndrome de Estocolmo distorcida: o casal raptado pela imagem/objeto.

 

 

6 – Ombudsman.

 

‘Ombudsman’, segundo Houaiss: “[…] jornalista, contratado de fora ou pertencente ao quadro de funcionários da empresa, que, de maneira independente, critica o material publicado e responde às queixas dos leitores”.

 

Neste espaço, eu mesmo faço a mediação entre os leitores e a coluna. Poderiam me acusar de nepotismo. Mas, juro, sou isento! E será que contratar a si mesmo equivale a contratar parente? Eu me desdobro pelo meu público. E, o ‘duplo’ [ele, de novo!] não coincide com o sujeito. É o ‘outro’ em si! A alteridade na raiz do ‘eu’. Por isso, vou de ombudsman!

 

Depois da última coluna, do mês de março, recebi muitas mensagens de felicitações de pessoas que compreenderam a grandeza da minha pena. Fiquei feliz, pois sempre quis ser reconhecido pelo talento e não só pelo meu corpo. Recebi, entretanto, mensagens de gente que discorda de tudo quanto eu escrevi. Pessoas ofendidas porque ‘amam o calor’, ou porque colocam um círculo sobre a letra ‘i’, ou porque são muito felizes de manhã bem cedo, ou porque adoram o carnaval, ou porque não sabem apreciar angústia e depressão. Preciso deixar claro, desde já, que não gosto de quem discorda de mim. Se eu digo que ‘é’, é porque é. Em segundo lugar, ninguém manda em mim.

 

Entretanto, houve também quem contribuiu com críticas sensatas. Pessoas, de reputação ilibada, foram justamente as que sugeriram que a coluna encolhesse. Reduzi o texto pela metade. E vou me esforçar para ser ainda mais enxuto da próxima vez. Minha meta, como numa dieta, é diminuir o peso! Até chegar a apenas uma reflexão! E, de dúzia, passarei a vender raciocínios por quilo. Note-se que ser prolixo tem a ver com insegurança: escrevo dezenas de reflexões na esperança de que alguma preste!

 

Agora, só em maio, aí sim!,o melhor mês da cidade. Feliz dia do trabalho. Fui!

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]