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Gesto e Juventude

Publicado em: 24/03/2023 |


Chá e Cadernos 100.99
Mauri Paroni

 

Na aparente contradição entre a narração da pintura e a representação do gesto de quem pinta, o que narra é o gesto em si. O gesto é, também, cor.

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Associo, com imensa licença poética, a palavra “cor” às palavras “cord”, coração e essência. Em juventude, o teatro a mim compareceu enquanto música e pintura. Havia, também, a contestação de forma muito peculiar. Era tocar violino numa época em que o instrumento era coisa de “velhos”, era coisa de careta, segundo uma ignorância juvenil incentivada pela ditadura militar. A imensa solidão consequente virou uma escola de resistência. A dificuldade que era a ausência dos trastes dos espelhos dos violões, a posição estranhíssima do braço esquerdo para segurar o instrumento, a aguda vibração das cordas perto do ouvido, a percepção da base harmônica que fundeava o jazz e o rock – tudo elevava a dopamina e a adrenalina muito mais que a maconha em seus albores na classe média. Que aventura era a obrigação de pensar para sobreviver! Mas um sambista como Cartola não tinha lugar naquela turma? Evidente que sim – ou até o Valdick Soriano e seu romantismo enfrentado no tabu da sexualidade burguesa.

Era uma breve simpatia de viés trotskista antes de ler Trotski, enquanto os que tiravam uma de “liberdade” em 1975 são hoje os reacionários que professam a imbecilidade internáutica da pós verdade assassina. Cheguei a ser ameaçado por um parente fascista muitíssimo próximo com um revólver calibre 38 – por declarar o que pensava dele.

Superei o trauma procurando esteticamente um movimento de avanço; encontrei-a apreciando a continuidade que alimentou Turner (1775-1871), Stendhal (1783-1842), Villa-Lobos (1887-1959), Cartola (1908-1980), Monet (1840-1926), Marc Chagall (1887-1985), Tadeus Kantor (1915-1990), Luigi Pirandello (1867-1936), Ariano Suassuna (1927-2014), na Escola de Arte Dramática de Milão e, bem mais tarde, na luz fotográfica de Hilton Ribeiro, nos rios da África centro-ocidental e em vários centros teatrais da Praça Roosevelt (ver “Entre o Nada e o Infinito”, de Ivam Cabral – ou a história e atividade do lendário e vivo Cine Bijou).

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Cito-os não por gosto estético, mas pela ausência de ruptura formal no avanço da arte. Pelo relógio. Muitos artistas transformam a estética sem – aparentemente – romper seus padrões convencionais. Como as continuidades dos riôs ou do indiano Mahabarata, quase ou totalmente religiosas. Para não empreender voos excessivamente teóricos, tentarei ater-me a intenções pedagógicas. Peço perdão por eventuais forçamentos. Citei Turner pois ele “narrava” (sim, com aspas), incêndios e tempestades em época estética pré romântica, pré sentimentos, paralela à Revolução Francesa, a ruptura política essencial para o Ocidente, com importantes reflexos no leste e sul do globo terrestre. Consciente ou não, isso lhe facultou a pincelada livre das cores, o que, no Brasil, Manababu Mabe (1924-1997), Tomie Othake (1913-2015), Ligia Clark (1920-1988) fizeram cem anos depois no abstracionismo, lírico ou concreto. Para não ficar nisso somente, Pirandello escreveu narrando a crise do triângulo amoroso burguês e legou sua ousadia a Samuel Beckett (1906-1989), a Bertolt Brecht (1898-1956), a Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), a Peter Weiss (1916-1982), a Augusto Boal (1931-2009) e aos anteriormente citados. Onde havia figurações e narrações convencionais, entrou a cor, o flashback, a contaminação cultural e idiomática, a tradição da anti-convenção.
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Por que é importante sugerir esses autores? para aguçar uma visão, um modo físico de pensar o gesto enquanto se pinta, a performance de um ator enquanto performa, o suporte de uma dramaturgia do corpo de quem vê, de quem assiste, de quem representa e performa num palco, de quem constrói e desconstrói um lugar cênico literal – o de onde se vê = “theatron”.

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Nunca será demais lembrar os gattopardi, a mistura siciliana de África, Oriente e Europa, mistura que tem tudo a ver com o tropicalismo brasileiro: “Nós fomos os Leopardos, os Leões; aqueles que nos substituirão serão os chacais, as hienas; e todos os Leopardos, chacais e ovelhas continuarão a acreditar que somos o sal da terra”, de O Leopardo – “Noi fummo i Gattopardi, i Leoni; quelli che ci sostituiranno saranno glisciacalletti, le iene; e tutti quanti Gattopardi, sciacalli e pecore continueremo a crederci il sale della terra” – Il Gattopardo, Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896 – 1957). Sugiro a visão do filme homônimo de Luchino Visconti (1906-1976), ainda que sejam paralelos e diferentes.

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Deixo algumas imagens de Turner, Chagall e Eisenstein (1898-1948), que falam por si nos títulos, em um momento contemporâneo de visões confusas de tomadas de bastilha, agressões indesejáveis a parlamentos, execuções de famílias reais, degredos desejáveis a mandões. O gesto pintor que é dança de espadachins libertários, como as montagens de Sergei Eisenstein que subvertem o engessado realismo “socialista”. Isso é mais que criar ruptura; é manter continuidade numa revolução.

Estudo de Luz e Fogo, Talvez em uma Oficina de Vidro, Veneza; Incêndio no grande armazém da Torre de Londres; A Queima da Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns, 16 de outubro de 1834 – A Study of Firelight, Perhaps in a Glass Workshop, Venice; Fire at the grand storehouse of the Tower of London; The Burning of the Houses of Lords and Commons, 16 October 1834.

Fonte: Tate Gallery, Londres

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Eisenstein – “Ivan, o terrível” (1941) – não precisou da ruptura. Bastou-lhe o sentido gramatical da visão – fundamental para um cineasta. Em sua revolucionaria dialética feita de sentidos contrários, somou ideogramas. Fotos do arquivo de cena Mosfilm.

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A pintura de Chagall no forro da Ópera Garnier, teatro convencional parisiense. A obra que anteriormente ocupava o espaço, de Jules-Eugène Lenepveu, foi coberta pelos painéis de poliéster desmontáveis pintados por Chagall; não destruiu o passado. Chagall e o seu afresco sala do teatro renovam o Theatron – do grego antigo, de onde se vê.