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Experiência Pessoal (três – continuação – camera oscura)

Publicado em: 11/03/2024 |

Mauri Paroni
Cha’ e cadernos 200.13

A realidade do fluxo vital enunciada por griots e Brontë ajuda-me a elaborar uma projeção narrativa do que vivi em primeira pessoa – a ser contada com começo, meio e fim pelo avesso e contemporaneamente. O que sugiro nos textos a seguir é imaginar um aparelho ótico e mental que os ligue além da compreensão racionalista. Tal aparelho é a câmera oscura, muito utilizado por mestres da pintura do Renascimento e por vários astrônomos árabes desde o século IX.

A camera oscura é uma especie de caixa com um orifício ou lente através do qual a luz é refletida numa tela interna oposta ao orifício. A distância deste à tela permite que a imagem externa capturada seja projetada nela de cabeça para baixo e do avesso. Reproduz o espaço real tridimensional numa superfície bidimensional com exatas luz e sombra.

Os próximos parágrafos alternados serão, também, uma inversão do fluxo de vida real.

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– O que se vê na imagem externa real.

O corpo inerte de minha companheira de vida, Sylvia, em seu ataúde. Diante de seu rosto sereno, gente amiga e parentes observam fotografias de momentos de sua vida,- fotos fixadas por minha enteada com pregadores em cordas arranjadas como varais de roupa a secar ao sol.

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– O que se vê na imagem projetada invertida na tela interna da câmera oscura.

Artista com trajes de Hamlet abre uma gaveta de uma cômoda. Extrai e lê um papel entre tantos, amassados como bolas de um sorteio:

“A ausência física de minha companheira de vida recorda que o libertarismo de seu Espírito de Kathy, em O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, a salvaria da prisão de sua moral inoxidável. Um campo de batalha móvel, um tango possível sob a luz.”

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– O que se vê na imagem externa real.

“Na margem oposta de um rio, a essência da história ficcional é causada pela realidade do mundo interseccionada com a arte. Por que a sua trama segue princípios convencionais, os fatos que sustentam a biografia real são fundamentais. Estes têm a ver com as suas geografias e os seus tempos de convivência com o real – Há quem os chame de performance, mas é mais: é contexto. Quer dizer, a narração se completa por ser incompleta a realidade. Este é um dos infinitos paradoxos da arte performática. É fluxo existencial e artístico ao mesmo tempo.”

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O que se vê na imagem projetada invertida na tela interna da câmera oscura.

– Artista com trajes de Hamlet abre uma gaveta de uma cômoda. Extrai um papel entre tantos, amassados como bolas de um sorteio:

“Para ilustrar esta ousadia, tentarei imprimir uma clima joyceano aos próximos escritos, em presumível monólogo interior na mente do ator que gostaria de ser ficção pura. Mas não é: Há um desejo apaixonado pela partida real da companheira deste que escreve.

Pausa.

Coincide com o Ulisses joyceano por ser narrado “por causa de”, mais que “a partir do” dia em que o narrador apaixona-se pela maior relação amorosa de sua vida. Ele narra como sendo tudo o que ocorre num único dia: 16 de Junho de 1904. Aqui, estamos na direção do funeral de minha companheira, em Novembro de 2023. Vivido pelas pessoas comuns que somos – mais que artistas, estamos soltos na cidade, mas sobretudo na mente. Escrevo como um inicio de uma saga de sentimento: mais que isso. Não sei defini-la. O que sei que o amor que por ela sinto, depois de sua passagem desta vida aumenta diariamente e sem controle. Este é um invólucro impossível, é amor de pessoa comum, de qualquer transeunte de qualquer cidade.”

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– O que se vê na imagem externa real.

– Artista á paisana declara:

“Fui responsabilizado pelo cineasta Beto Brant para formular a “pressão” da realidade da atriz protagonista de nosso roteiro do filme “Crime Delicado” (2005): a ausência de uma das suas muito definia a personagem do roteiro criado a partir do romance de Sergio Sant’Anna, livro homônimo. O romance descreve uma personagem levemente claudicante. Beto escolheu uma atriz realmente sem uma perna – para interpretar alguém realmente sem uma perna. Não criei distância. Eu mesmo me aviava para uma cadeira de rodas, dado a progressão de minha esclerose múltipla

Pausa.

Terminado e distribuído o filme nos cinemas, fui convidado para saber o resultado de uma votação popular e entrega de um prêmio no Teatro do SESI. Ali, deparo com uma rampa que subia da plateia ao palco. O resultado deveria ser uma surpresa. Eu era o único cadeirante na plateia. Ao subir ao palco, declarei que a protagonista e a sua personagem sem perna não pode fingir que não tem perna. Nem um roteirista cadeirante pode fingir que caminha regularmente sem a cadeira de rodas.”

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O que se vê na imagem projetada invertida na tela interna da câmera oscura.

– Artista com trajes de Hamlet abre uma gaveta de uma cômoda. Extrai um papel entre tantos, amassados como bolas de um sorteio:

“Quem escreve um roteiro também não pode fingir. A menos que queira ser reconhecido na realidade por ter culpa no cartório. É pura alquimia.

Pausa.

Amor meu…

Pausa.

… É impossível acreditar que voce tenha partido desta vida. Mas acredito. O fim não se pode fingir. Quero ir junto. Que frio… Que frio… Quero que fique comigo, feliz, agasalhada comigo… Melhorou. Morte não se finge.

Pausa.

Como a Kate Bush que tanto te fiz gostar, amor meu, falando do Wuthering Heighs, O Morro dos Ventos Uivantes.”

(Continua)