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Experiência, existência e resistência

Publicado em: 13/09/2023 |

Chá e Cadernos 200.9

Mauri Paroni

Dirijo teatro desde 1980. Escrevo há menos tempo, e atuei ainda menos. Jamais pude, quis ou consegui repetir o mesmo modo de trabalhar em qualquer espetáculo, performance ou leitura que fosse. Ou repetir as mesmas indicações a artistas diferentes, mesmo que o texto e o contexto fossem exatamente os mesmos. Experimentar foi a única certeza que me concedeu segurança nas relações humanas privilegiadas do universo e do convívio cênico.

Quem se aproxima de um experimento teatral sem a regra do palco convencional percebe, de maneira assustadora e imediata, que o desafio é aparentemente impossível de ser vencido – fazer teatro em época de celulares parece absurdo diante do condicionamento da percepção do público enquanto sede real da fruição da arte. Como se isso não bastasse, as áreas e instrumentos não têm sentido ou função se pensadas e praticadas separadamente. Texto, atuação, direção, cena, espaço, iluminação… parecem um quebra-cabeça que não pára por aqui. Entram as culturas, os idiomas, as linguagens, as lutas políticas. Até o intratenimento. Quanto mais tudo for instado numa simpatia, maior será a qualidade.

***

– Olá, professor, tudo bem? Posso tirar uma dúvida? Na verdade, estou em busca de uma orientação. Voltei a atuar e estou um pouco angustiada (…) sobre como o meu eu ainda aparece demais em meu trabalho; gostaria de saber se você indica alguma leitura ou exercícios para que eu possa trabalhar essa questão. (…) uma segunda pergunta, talvez você tenha referência… gostaria de fazer uma pesquisa de mestrado sobre o teatro enquanto ferramenta contra a violência em relação à mulher.

O que eu disse à estudante em relação à primeira dúvida:

– Trabalha a gramática da cena. Lê o que puder de Jo Chaikin. Esquece o teu nome. (…) Tem o grande eu e o pequeno eu. Teu nome é o pequeno eu, diante da arte e quem te assiste; a arte que desafia a tua personalidade e o progresso social da cultura são o teu grande eu. Teatro é um conjunto complexo e privilegiado de relações humanas – isso, diretores deveriam repetir qual mantra antes de entrar em sede de ensaio ou de experimento. A coisa chega a ser desconcertante pela velocidade anticonvencional dos experimentos ou dos trabalhos mais convencionais. E dizer “ego” ou não (ou “eu”) são ideias vagas, são uma humildade ficticiamente convencional. Chamo, neste caso, “ego” de individualidade excessiva. Esquece, pois, teu nome enquanto individualidade. Pensa-te mais coletivamente, com um pé na tua personalidade, no além de ti mesma, no outro de ti.

Adoração etrusca

Em relação à segunda pergunta – quanto ao que me aludiu sobre a Mulher, sugiro um aspecto importante porém pouco abordado no Ocidente. Talvez possa ajudar a reflexão. São fatos históricos:

É simbólico que os antigos romanos impediram a continuidade da escrita etrusca por ali serem mulheres a praticarem-na com regularidade. Mas a arqueologia dos objetos quotidianos e tumbas atestam que quem dirigia a casa, rica ou pobre, era a mulher; tudo dependia do contexto, se era militar – força bruta associada à aniquilação da diversidade ou se era doméstico – diálogo associado à transmissão da cultura às gerações mais jovens. Deram um “jeitinho”. Reprimidas, as mulheres etruscas influenciaram a raiz romana pela língua urbana. Casa era chamada “domus” pelos latinos. Quer dizer: domínio; domi; domínio. Paralelamente, a Etrúria – e suas mulheres – antes de serem assimiladas pelo militarismo romano – manejavam cultura, comércio, viagem, escrita, documentos. Roma primeiro destruía com força militar para, em seguida, praticar o comércio, o direito e as vias – estradas – para manter a riqueza; ato contínuo, a concessão da cidadania romana para o estabelecimento de novas famílias garantiu a volta à língua etrusca. Era o “domínio” de um universo que metabolizou a supremacia da matrona romana no lugar da mãe judia – médio-oriental – do Mediterrâneo. A mulher etrusca e sua herdeira direta – a matrona romana – era “domiseda” (de comando) e “laniseda” (alusão à trama do tecido, figura para relações humanas).

Típico mãe latina, quase sempre impedida de ler e escrever, outra mitificação perpetuou o status quo na posterior neo-cristandade: Maria, a substituta de Proserpina/Ísis, a mãe boa, sensual, material, misericordiosa, indefesa e… Virgem. Esse ideal de pureza assexuada forçava a valoração da maternidade cristã. Freud e Jung detonaram isso com a teoria dos complexos, mas a semente estava fecundada séculos antes. Está tudo caindo pelas tabelas há um milênio, mas a mudança é lenta por ser profunda. Isso também teve muito a ver com a escravização da mulher preta e a indígenas como instrumento econômico da colonização americana – do Sul, sobretudo.

Sarcófago etrusco

***Para alargar a visão sobre mudança cultural, sugiro uma visita ao que diz o pensador indígena Ailton Krenak, muito para além da filigrana da aliteralidade indígena, fato real que constrói e não anula a história, nossa , portanto dos seus, incluída.

[Trecho de artigo no Jornal Estado de Minas]

“Cento e vinte e seis anos depois de sua fundação por Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras (ABL) poderá ter, pela primeira vez em sua história, um escritor indígena exatamente na cadeira de número 5, que em 1977 acolheu Rachel de Queiroz, a primeira mulher integrante da instituição. Longe de uma perspectiva pessoal, o escritor indígena Ailton Krenak, que (…) completará 70 anos, sustenta que sua candidatura à ABL tem dimensão coletiva e sentido de reparação histórica.

Só tem sentido se for uma reparação histórica, se, ao admitir a minha presença naquela academia, a instituição esteja se abrindo para uma questão de justiça histórica. Para o Ailton, ter assento na ABL não é uma ambição pessoal. Mas para a pessoa que se constitui no sujeito coletivo, esse gesto é para abrir a porta dessas instituições, assim como as cotas abriram as vagas nas universidades e hoje temos mais de 60 mil indígenas ali fazendo a sua formação em ensino superior. Alguém tem de começar isso”.

Diz Krenak em Ideias para adiar o fim do Mundo:

“Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.”

***

Elias Canetti (1905 1994) romancista de nacionalidade búlgara e britânica que escrevia em língua alemã., Prêmio Nobel de Literatura em 1981, sempre às voltas com pertencimento cultural, escreveu uma maravilhosa descrição do descobrimento do mundo através da linguagem- A história de repete e ele não perde a língua.

Trecho de A Língua Absolvida:

“ […] Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Sai por uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha. À nossa frente, na mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente […] Ele se aproxima bem, pára e me diz: “Mostre a língua!”. Mostro a língua ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-o e põe a lâmina bem perto da minha língua. Ele diz: “Agora lhe cortaremos a língua”. Não ouso recolher a língua; ele se aproxima cada vez mais, até quase tocá-la com a lâmina. No último momento ele recolhe a faca e diz: “Hoje ainda não, amanha”. Ele dobra o canivete e o guarda no bolso.

Todas as manhãs saímos pela porta para o pátio vermelho, a porta se abre e o homem sorridente aparece. Sei o que ele dirá e aguardo sua ordem de mostrar a língua. Sei que ele a cortará, e cada vez tenho mais medo. Assim começa o dia e a história se repete muitas vezes.

Guardo-a para mim, e só muito mais tarde pergunto à minha mãe sobre isso. [ …]A ameaça com a faca produzira seu efeito, a criança silenciara sobre isso durante dez anos.”

A palavra preciosa deles fala de suas existências e coletividades por ser empenhada contra a morte. A vida teatral requer existência e resistência.