EN | ES

Exílio Segundo

Publicado em: 08/02/2022 |

Chá e Cadernos 100.76

Mauri Paroni

Depois do Exílio primeiro, fomos deslocados ao município de Curtatone, lugar de peregrinação a nove quilômetros de Mântua, numa basílica tardo medieval à beira do lago.  Deste segundo exílio nasceu  “Milagres!” (“Miracoli!”) – jamais realizados.

Continuamos no espírito da sátira, cuja fruição desmonta por dentro a estrutura de poder de quem a sofre. Renato trabalhava numa trama oriunda de histórias imaginadas a partir da visão dos objetos deixados na nave da basílica, erigida por uma promessa. A igreja era um ex-voto oriundo da superação da terrível peste de 1300 até 1635 por ordem dos Gonzagas, a família  governante de Mântua.

A basílica em Curtatone, Província de Mântua – Foto Luca Bulgarelli

A basílica situa-se à margem do Lago Superior, rico em pântanos. Eram a origem de um crocodilo empalhado na nave central, nacervo de ex-votos de milagres. Estes trazem histórias de répteis e princesas, fabulações, no caldo de metáforas, alegorias, testemunhos que os habitam. Sobretudo na igreja. São um desafio magnifico para qualquer narração teatral, um creme privilegiado de linguagem. Gosto de citar o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976); “A linguagem é a casa do ser e em seu lugar de morada habita o ser humano”. Já que aqui estamos e que artistas de teatro somos, não custa lembrar ‘A caminho da Linguagem”, do mesmo Heidegger:“O homem fala. Falamos quando acordados e em sonho. Falamos continuamente. Falamos mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos. Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro.” [HEIDEGGER, 2003, p.7 (*)]

Ao vermos uma estátua alegórica do carrasco chamado Giuanin de la masola/Giovanni della mazzola/Joãozinho da marreta, seguiu-se a obrigatória pesquisa que todo autor competente faz em bibliotecas e documentos históricos. Renato Gabrielli trouxe disso uma história excelente ante a visão externa da torre e de um enorme martelo, usado para empurrar uma lâmina letal ou, diretamente, esfacelar a cabeça dos condenados à morte. Iniciemos com estes dois objetos; foram o critério mais simples para selecionarmos o que entraria ou não na narração.

A marreta e a  torre. Renato criou, para um nosso ótimo ator que trabalhava no setor de impostos da cidade, dono de grande pendor a transgressões, um mau elemento medieval que praticava a usura  exacerbada, que precificava o  tempo, de acordo com a teologia dos inquisidores. Ou seja, um herege que roubava Deus. Foi condenado a morrer empurrado de uma torre. Executada a sentença, ele não morreu, ficou somente coxo. Diante da lei do ordálio, Deus estava com ele; para provar tal verdade divina, foi posto no cadafalso, onde o carrasco golpeou a sua cabeça. Que não se esfacelou. Ele não morreu e teve a sua fala meio comprometida; a esse ponto, obteve a Graça.

De rico usurário passou a mendicante, balbuciando impropérios contra os seus acusadores. Nutria, dentro de sua alma, muita vontade de vingança. Esta se apresentou quando seguiu um monge confessor que se retirava da diocese. Assassinou-o, apossou- se de sua batina, e passou a confessar fiéis em seu lugar. Obteve informações importantes, e ministrava penitências a senhoras aconselhando a tratar bem um certo mendigo santo coxo que morava defronte à igreja. Ele próprio corria depois para a sua casa, reassumia a sua identidade, instalava-se a gozar das esmolas e prazeres oferecidos piedosamente pelas penitenciadas a quem ele confessava.

Visto o nosso histórico na cidade, atrasamos muito o fornecimento da sinopse de uma trama dessas ao vigário supervisor da basílica, o qual exigia presenciar nossos ensaios/laboratórios. Manifestou sua perplexidade ao ver entre os artistas certos funcionários da cidade, alguns  também seus fiéis, caminharem como coxos para molestar senhoras (atrizes) com lenços piedosos na cabeça. Sobretudo, não entendia aqueles textos balbuciados.

 

O vigário, desconcertado, comunicou o seu descontentamento ao secretário provincial de cultura. Este era um cardiopata que não podia ser contrariado, o Architteto Dottor Cappelletti; imediatamente, veio ter conosco em uma reunião de emergência. Durante o colóquio, tenso, o chamamos de Architteto Dottor Ravioli; fora de si, ele truncou  a nossa reunião alegando mal-estar físico e espiritual;

A reunião, que parecia um plot surrealista, provocou uma enorme crise produtiva, pois nela não tivemos o tempo adequado para comunicar e explanar a sincera intenção de utilizar alguns ex votos. O vigário negou-me-a, justificando que eram objetos evocadores de dramas reais. A questão , tentei explicar, era justamente aquela: queria cenografias e objetos puramente cenográficos, ou seja, fictícios, mas seguia o princípio de Brecht com a carroça real de Mãe Coragem, ou mesmo das pratarias nos filmes de Visconti.  Essa questão se havia imposto também quando Amadori pintou a carroça de um morador de rua, por isso muito contrariado por ver cancelada a maior marca sua vida. Amadori trouxe, então, inventou um ex-voto “puro”: um enorme e abstrato fêmur que escorava a torre d]a basílica mariana dos milagres. Gabrielli e eu entendíamos aquela boa ideia como abstrata demais – queríamos mais tempo para refletirmos autocraticamente e explicarmos o projeto. Mas Amadori tinha a sua personalidade expansiva, e a comunicou ao vigário antes mesmo que estivéssemos totalmente de acordo.

Diante daquela vitalidade, o vigário quase teve um enfarte. Imediatamente comunicou à prefeitura  que éramos blasfemos. personas non grata, a direção da escola ficou em meus lençóis.

Aos trinta anos, vivi aquilo como uma censura. Renunciamos ao espetáculo. Os organizadores ficaram aliviados.

Acabou-se a nossa experiência mantuana sem o espetáculo, mas uma grande lição – que nos lembrou da advertência de quando trabalhamos com Heiner Müller: se a arte tiver importância política e boa qualidade estética, provocará a censura injustificada justamente por esse motivo, invocando outros para camuflar a sua operação de poder. A falta daquele espetáculo virou a sua presença em todos os que fiz posteriormente. Um saber herdado de dois exílios e um perene ex-voto dedicado à memoria de Gabriele Amadori.

O cenógrafo Gabriele Amadori (1945-2015)

———–

Não tomo estes artigos enquanto conhecimento de tipo acadêmico, até porque este não e é um espaço para tal fim; ainda assim , não me esquivo de qualquer critica intersubjetiva. Aliás, essas leituras têm mais utilidade quando confrontadas por sujeições contrárias: é importantíssimo levantar eventuais problemas nas ideias veiculadas. Não existe ideia ou conhecimento perfeito.

(*) de https://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1862