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Exílio Primeiro

Publicado em: 01/02/2022 |

Chá e Cadernos 100.75

Mauri Paroni

Exilado em Mântua, Romeu de Montecchio viveu em amargura a alegoria da ignorância da catalepsia de Julieta. Se um exilio teatral pudesse ser vivido além da literatura dramática, fui feliz na cidade de Mântua. Diretor jovem, meio deslocado produtivamente por um rival,  fui para lá enviado a ministrar uma montagem pedagógica patrocinada pela escola onde ensinava, dirigida pelo crítico ligado ao Partido Socialista Italiano Renato Palazzi. Ai de  quem não fosse ligado a algum deles naquela Itália pré Mani Pulite (Mãos Limpas, uma espécie de Lava ato dali, iniciada em 1993).

Fora de qualquer conchavo, estavam ‘meio assim” comigo e com meu companheiro dramaturgo Renato Gabrielli

Ler aqui:

https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-um-grande-autor-contemporaneo-renato-gabrielli ]

Outra causa provável foi termos encenado um seu texto inspirado no dramaturgo expressionista alemão Ernst Toller (1893-1939): Opplà, Estamos Vivos – em torno da crise do sistema político italiano da época. Fomos tradicionais e transgressivos ao mesmo tempo. O público acorria e não se confundia, mas os especialistas sim. Fomos premiados por uns e odiados por outros, rivais puseram lenha na fogueira, queriam nossa pele, ganhamos destaque – e normais intrigas do mundo teatral.

Nosso consequente exilio foi em Mântua.

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A água da cidade é vulcânica e tem cor e cheiro de enxofre fortíssimos. Basta abrir uma torneira para ter a onírica impressão de estar sobre o inferno – Inferno também santo, pela qualidade da arte ali presente. Poucas cidades houve com um só apogeu econômico e político como Mântua, cujas artes maiores foram de um só período]. Situada numa audaz península  posta sobre três lagos, evidente é a marca do Renascimento na sua culinária, pintura, arquitetura, urbanismo, escultura – é como protagonizar uma experiência física na máquina do tempo. Fazer  um espetáculo ali, ao ar livre, numa  espécie de exilio, foi um jeito de transgredir em meio a uma arqueologia tradicional, que contrastamos escolhendo um tema do Surrealismo – Ubu Cornudo a partir de Alfred Jarry

Relatei isso a Zé Celso uma vez, e ele aconselhou a descrever a experiência – do ponto de vista teatral. Pois: estas palavras são memorialistas, dedicadas a estudantes de teatro.

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Enfrentamos um antigo exército. Além de ser uma corporação organizada militarmente há séculos, a Guarda Suíça Pontifícia é a mais vistosa e importante força de agentes de segurança do Vaticano. Oficialmente, porta a lindíssima farda desenhada por nada menos que Michelangelo Buonarroti desde o fim do Renascimento. Como qualquer corpo de elite de guarda palaciana secreta,  traz uma fortíssima tendência à  repressão dos desejos que o corpo não quer admitir. Isso, dizem alguns dos seus comandantes, prove a guarda de uma arma especial: a eficiência da crueldade reprimida – neste caso, pela teologia superficial, que aqui fique bem declarado. Aquela guarda desalojou toda a nossa equipe dos quartos – os melhores do hotel em que nos haviam colocado enquanto artistas (?) – pois as janelas que davam para  qualquer lugar onde iria transitar o Papa.

Fomos desalojados, mas os rumores de secretas atividades daquele seleto grupo militar religioso chegaram aos ouvidos mais atentos – misturados aos sons de outras atividades de verão realizadas… por artistas.

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Havia não profissionais. O papa Karol Wojtyla/Joao Paulo II (1920-2005) era um ex-ator, portanto não profissional. No contexto consumista da Mântua de 1994, suas pregações anticomunistas atraiam poucos seguidores. Além disso, a cidade tradicionalmente apresentava expressiva votação de esquerda.  Socialistas, gente de centro eram poucos, mas eram o fiel da  balança da governabilidade. Isso lhes conferia quase todos os cargos na administração. Um centro que define maioria parlamentar é, mais que uma convicção política, um sistema de poder – em qualquer lugar do Planeta, com diferentes características,

Pois os seguidores papais que faltavam naquela ocasião foram então trazidos da Polônia, às centenas, em ônibus de uma terra “libertada” do jugo da realpolitik (a pragmática do possível, acima da ideologia, da obrigação moral, a prática das relações do poder), na imediata queda do Muro de Berlim. Nada de trens: ônibus em romaria, da Polônia ao Norte da Italia. Nada de Roma. Era importante a realização de uma missa papal, ao ar livre, na magnifica praça Sordello, diante do palácio Ducal de Mântua, um dos centros da arte do renascimento.

Praça Sordello

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Historicamente, o Catolicismo engloba. Não houve concorrência conosco, reles teatrantes. Fomos englobados naquele exilio. Felizmente, quando se faz teatro, se almoça, se janta, se ama e se odeia, se faz política, se vive. Quem vive, faz política. Dizem nos que não, mas é assim. Se ensaia. Somos sacerdotes da laicidade.

Católicos fazem procissões. Procissões se ensaiam. São sacras, são teatro. Teatro é sacro, ainda não é religião. Mas as duas coisas correm paralelas, confundem-se, são intersubjetivas. E quem enfrenta poloneses nesse contexto?

Durante as tardes, éramos constrangidos a ensaiar sob um sol escaldante; e ainda, sob o   olhar odioso de um zelador d maravilhoso Palazzo Ducale. O palácio, na verdade, era deixado em péssimas mãos. A antiga sede da culta corte dos Gonzaga era refém de um zelador ignorante; reflexo da atávica inexistência de condições para a manutenção da  imensidade do patrimônio artístico italiano; semelhante ao abandono destrutivo do patrimônio de biodiversidade da Amazônia, se me for lícito fazer uma comparação. Isso é a política da destruição.

O pátio do Palazzo Ducale, onde encenamos o Ubu


As torturas do Ubu

Aquele sabujo do vazio de poder mantinha, porém, seus poderes: impedia-nos de ensaiar.  Fazia barulhos com uma moto ligada dentro do esvaziado palácio; blasfemava, aos berros; desse modo, um pequeno poder,  filho do vazio político, destrói; manifesta-se esvaziando a produção de cultura de arte, pela onipresença bigbrotheriana, pela pequena corrupção de valores, pelas políticas da repressão à sexualidade ou pela transgressão perseguida, la lista é quase infinita e fragmentada.

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O nosso Ubu tortura tudo. Com problemas de consciência pela falta de empatia, descontrolado, chama a consciência,  que o adverte do absurdo. Contrariado, tortura a própria consciência… Tortura com qual instrumento físico? completando a proposta de Jarry. Gabrielli apropriou-se de uma minha sugestão, a ideia da “canga”. Passou-a ao texto e ao elenco, e iniciamos a criar a primeira delas. Esta nasce num café, sempre inspirada na visita do Papa Wojtyla contrastada pela iconoclastia surrealista. Era muito simples: consistia em apontar a parte convexa de uma colher de barman e gira-la neuroticamente em movimento anti-horário contra a “vítima”.

O ator Karol Wojtyla em 1938

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Resguardado o respeito à religiosidade que o Papa representa, estava construída a alegoria. Karol, que sobrevivera heroicamente a um atentado realizado por um fanático e louco turco, foi exposto à nossa colherzinha, à nossa primeira canga. Aclamado por uma multidão de fiéis profissionais, transitava a poucos metros de nós, em seu papamóvel, em direção do Palácio Ducal. Ele  notou o estranho movimento da colher, nossos olhares se cruzaram por meio segundo. Um guarda pontifício chegou a tocar em sua arma, mas, muito bem treinado, raciocinou que nada devia fazer e deteve seu reflexo. Nada conhecia da patafísica. Quase fui revistado pela guarda suíça pontifícia. Ao contrário de Karol, o agente não era um verdadeiro ator. No máximo, um figurante englobado pela performance. Nela e na paz sobrevive a transgressão do teatro: transgredindo o teatro. Respeito. Deu-se o triunfo silencioso da canga ubuesca, da fatura, do despacho.

A primeira Canga

Sem pretensões de sucesso ou fama, em silencio, a nossa subversão formal operou sua estética. O cenógrafos Gabriele Amadori e Luigi Mattiazzi (integrante do grupo italiano de outro polonês, Tadeusz Kantor) desenvolveram as outras cangas, uma para cada personagem, como um figurino, uma roupa que lhes condicionava pesadamente os pensamentos. Incentivei o elenco a reclamar seriamente das cangas, a interromper as falas, a  bradar as suas mais proibidas angústias em sua própria cidade. O publico identificou-se imensamente com os lamentos. A  ideia da obsessão da tortura espelhou-se em paralaxe, o clima instalou-se, a alegoria virou o centro da narração. Nunca mais fui o mesmo diretor. A experiência da transgressão virou modo de viver. Um sacerdócio laico.

Tudo por uma prática ingênua: criar uma atmosfera próxima à proposta intuída pelo texto a ser representado, escrito ou não no papel; essa atmosfera adquire laivos obsessivos; dá modo a que o diretor não seja caricaturalmente “culto”.  Espalha-se pelo elenco, pelo grupo, pela produção, a ponto de deixar confuso quem está engajado realmente no trabalho. Esse também é o  melhor parâmetro para avaliar se o grupo de trabalho será eficiente, sem gerar autoritarismos ou jogos de poder entre os participantes, público aqui incluído.

Partimos do falso conceito inspirado na definição de Jarry sobre a patafísica, aquela “coisa  que não se sabe o que é, mas se adverte a necessidade”. O que se vê no consumismo. A palavra “canga” soa bem e cai como uma luva na trama obsessiva de Jarry, na presença de atores não profissionais. Que iam do Bispo, ao Papa, à sua guarda secreta, aos ônibus de deficientes físicos mantidos pelo sacramento da caridade católica polonesa que derrubou o regime militar filo soviético da matriz russa daqueles anos.

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Eu achava que fosse uma simples transgressão. Mas era muito, muito mais. A vitalidade daquelas atrizes e atores, donas de casa, operárias, marionetistas, a  quem fomos “condenados” num suposto exilio… ofereceu uma das mais importantes experiências  que vivi. Pelo contexto da época e da geografia. Como o é  hoje, sob pandemia, sob o manto das aulas na net, da presença eletrônicas.

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Em tempo: no último ensaio, onde tivemos decretada a nossa ausência física, o poderoso zelador ignorante bradava ameaças, condenações, pragas e blasfêmias tremendas a nós, artistas. Um deles me avisou, rindo, que estava prestes a ofender o bispo, e seus artistas deficiente físicos, ensaiando a procissão ao papa, que ali iria falar. Foi como assistir ao trecho de nossa encenação em que o Professor Acras é cruelmente empalado pelo Pai Ubu  enganado pela Senhora.

Ante o escândalo do bispo e guardas  vaticanos, o tal zelador foi preso em flagrante por blasfêmia em lugar publico. Não por sua má conduta como responsável do patrimônio histórico publico, mas por sua conduta antirreligiosa. A natureza do poder sempre se revela diante da arte, esse olhar poderoso; revolucionário, quando se está inserido no contexto propicio – arte vira transgressão em si. Essa não é uma constatação acadêmica – legitima – mas pragmática de quem construiu a vida artística na contestação contextual. Custou me popularidade, maus pagamentos, dificuldade existencial, saúde, maledicências e inveja. Nada que não seja conhecido por quem tem a nossa profissão. Hoje, provê estas palavras,  que dedico a quem se inicia na aventura da cena.

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Eu achava que o espetáculo fosse progressista pela forma, conteúdo, estilo, dialética anticonvencional, apesar de, a seu modo, ser narrativo, mimico, surreal; mas era progressista diante do contexto. Isso explica o pânico gerado em reacionários, oportunistas, diante de estética biomecânica, antinaturalista do Ubu Cornudo. Chocou a mímica dos empalamentos, a parodia de um amante  múmia “que não podia beijar porque era enfaixada, que não podia beijar porque não tinha língua,  que não podia querer viver com a senhora Ubu porque estava morta; que não se aproximava da senhora por temer a dimensão de sua feminilidade”.

A plateia popular delirou; a elitista se retirou. Pagamos a ousadia. Fomos expulsos da praça e, no ano seguinte, relegados a um segundo exilio: deveríamos trabalhar fora da cidade, onde uma igreja havia sido  construída como oferta pelo fim da peste bubônica  do século XVII.

(Continua)