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Estelionato, Aparência, Alegoria I

Publicado em: 07/06/2021 |

Mauri Paroni
Chá e cadernos 100.46

Teatro de imagens vivas I

Na antiga República de Veneza, a imagem da “pitima”, vestida de vermelho, era temida já na sua aparição indiscreta. Em Veneza, cidade essencialmente comercial que dependia da credibilidade generalizada da população, quem não pagasse seus débitos privados corria o risco de ter – fisicamente – atrás de si uma figura viva a denunciar, por lamentos sob seu manto escarlate, o suposto calote. O efeito da sua doce melodia de blasfêmias e récitas lamentosas em dialeto veneziano era devastante para o devedor. Se a pitima fosse atacada, levaria o imprecado a uma grave condenação. Teatro de verdade.

Teatro de imagens vivas II

Para tomar distância salutar do teatro demasiadamente descolado que vivia quando estudante, juntava meus últimos dinheiros, tomava um trem e ia passar uma madrugada mucho loca pelas “calles” de Veneza. Bebia grappa para me esquentar e me vestia como uma espécie de pitima preta. Na caça de presumíveis estadunidenses capitalistas embriagados, postava-me na saída do cassino. Rigorosamente silencioso, mascarado sob um capuz preto, exibia, ridículo, uma corcunda mal ajambrada sob o sobretudo, caminhando em ziguezague como um vampiro. Ficavam horrorizados. Acreditavam que fosse um assalto. Não sabiam para onde fugir. Arriscava a detenção por isso. Não cobrava – nem procurava – débito algum, mas fiz amigos venezianos que se riam muito da brincadeira.

Descobri dentro de mim uma força irrefreável que até hoje me põe palavras enérgicas e silenciosas na mente durante qualquer ação artística que realize. Trata-se de um ritual que não consigo descrever além disso que acabei de narrar. É a diversão mais preciosa que tenho nesta existência.

Como tudo ali, sobretudo no inverno, reveste-se de lendas salvadoras da hipocrisia reinante em todos os cantos deste mundo, a mim parecia viver o sonho de virar o pesadelo daqueles pecadores neoliberais endinheirados. Nos comuníssimos campielli – largos citadinos onde a maioria do antigos venezianos foi sepultada junto a sólidos alicerces precedentemente postos sob a água – eu cultuava inadvertidamente o jogo de aparências de seus infinitos fantasmas.

Psicanálise da aparência 1

Passou-se muito tempo. O tempo do pior estelionato: o jogo de aparências que escorre mais que a água pelos dedos. O jogo dos fantasmas. O jogo concreto. O jogo real. A caminhada da parca em nossa procura.

Recito internamente textos para sentidos lamentos que, hoje, corrigem o doloridíssimo arrependimento pelo meu silencio maldoso de quando pude ser uma pitima alegre e ruidosa. Entre tantas lamúrias, esta seria a mais feliz – e publicável:

“Como foram injustas as coisas comigo! Aos meus sete anos, simulava um corcunda que ouvia o Rigoletto, quando a vovó me fazia ouvir os trechos que ela gostava. Explicou que Rigoletto era um palhaço de corte, um ‘paiasso gobo’, em seu dialeto infantil, o ciosoto (*). Passei a imitar o que nunca vi, seguindo somente a descrição dela. Ela se ria, mas advertia para não ousar caminhar em ziguezague porque, se um “anzoleto” – anjo travesso – cruzasse a caminhada e dissesse “amém”, eu acabaria virando aquele gobo desrespeitosamente imitado.” Viciado pelo prazer pecaminoso da dúvida, repetia aquela encenação para certificar-me que não havia anjo algum. No fundo, adorava sentir o demônio da ficção dentro de mim.”

Lamento jamais dito, aqui declaro: a vida artística é paradoxal e cruel. Hoje estou de verdade numa cadeira de rodas; jamais poderei reviver aquele saltitante corcunda de pernas trançadas diante dos estadunidenses bêbados na saída do cassino.

Injustiça! Não poder mais dançar ou fazer o corcunda me deixa prostrado. A vida é, quintessencialmente, um paradoxo dessa categoria. Sempre adorei dançar o passo do falso corcunda! Agora fiquei preso de verdade numa cadeira. Injustiça! Culpa da pitima! Que seja amaldiçoada!

Ah… ela também não escapou ao seu merecido destino.

A pitima contemporânea é uma das milhares de entidades abstratas bloqueadoras do crédito de qualquer cidadão, honesto ou desonesto que seja. É uma alegoria perfeita. Vai das ruas ao teatro e ao cinema. Após esse périplo, aporta na net, em alguns instagrams. Maldita, vence apropriando-se da linguagem do devedor. Não será humana, se este for insolvente. Irá sufocá-lo, como tem sido feito no mundo real.

É a metáfora dos algoritmos das transações em que se perde e se acaba a humanidade.

Vesti-me de vermelho, esculpi a máscara e fotografei-me na pitima que gostava de construir em caminhadas passadas

Um artesanato real e raro: o mestre de machadinha que esculpe a futura gondola.


Toda gondola, esculpida com artesanato secular, flutua sobre os reflexos de sua história. Existe de verdade.

(*) Dialeto da rival Chioggia – Ciosa -, pequena península posta a uns vinte quilômetros ao sul da laguna de Veneza.