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Epitáfios e traumas: admiráveis micro roteiros

Publicado em: 03/05/2022 |

Chá e Cadernos 100.88
Mauri Paroni

Era 1970, auge da ditadura militar. Duas palavras, “valsa” e “minueto”, preocuparam certas professoras do ensino médio (primário, na época). Tudo o que excedesse o, dizia-se, “normal”, era visto, revisto e controlado. Meu irmão gêmeo exclamou em classe que “amava e sabia dançar valsas vienenses”. Isso era “anormal” para a mentalidade educacional vigente. Torceram discretamente o nariz. Em outra classe, o extravio de uma linda caneta tinteiro presenteada por minha madrinha aguçou a indignação de outra professora. Lamentei-me em voz alta: “a injustiçada sequer conseguiu escrever o próprio epitáfio antes de seu desparecimento”. Nossos genitores foram chamados pela orientadora pedagógica: “vejam, deve haver algum problema – não é normal que crianças digam tais ousadias em aula”. Viramos folclore na escola, enquanto nosso irmão mais velho, péssimo estudante, violento, foi mandado a um colégio daqueles mais fáceis. Teve vida mansa. Continua péssimo, reacionário e preconceituoso; nós viramos artistas, coisa malvista no limbo pequeno burguês de qualquer classe média. Vida dura, no detalhe. Ditadura.

Para além do pequeno trauma, aquela estória do epitáfio jamais me saiu da cabeça. Só um vivo o pode escrever, somente um vivo o pode ler. Epitáfio é vida ou é morte? Epitáfio lido pelos vivos é o contrato da suspensão da desconfiança. Finge-se morto, finge-se divino, finge-se imortal, finge-se na vida além-túmulo, brinca-se com fogo sem fazer xixi na cama. Epitáfio é o roteiro mais essencial que existe.

Essência de uma biografia, um epitáfio é uma divagação (sonho a olhos abertos) na dimensão do tempo. Da história. Do tempo e do espaço. Parece um gráfico cartesiano; mas, vivido, é uma aposta pascaliana. Aposta rival, crítica e, a seu modo, risonhamente debochada.

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Curtir tal dimensão do tempo fez viver frequentemente devaneios “geográficos”. Flanar em cadeira de rodas fez a vida parecer e virar enquadramentos num plano-sequencias de um dolly cinematográfico. É impagável vagar como um morto, um fantasma, invisível, imaterial. Mudo. Alma penada. Teatro Noh japonês. Realização impossível de muitos sonhos estéticos de juventude. Coisa anormal. Ai… caio na essência de minha biografia: isso é teatro, não morre; eu morro, teatro não! – porque vive no paradoxo – “morre” a cada segundo, instante além de instante. Luigi Pirandello de “Um, Nenhum, Cem Mil” – ouvimos, diante do espelho, um vaticínio roteirizado que nos remete diretamente ao cemitério. A lapides que encerram existências. Próximas e sinceríssimas companheiras. Roteiros perfeitos. Mais perfeitos que o céu estrelado das frases de internet (do lixo ao incrível campo-santo de perfis de amigos falecidos, que teimo em ainda os conservar no celular). Somente Édipo percebeu que só se pode denominar-se feliz alguém depois da morte – ó essência trágica!

Grandes biografias, grande fluxo. Partamos de algumas, e imaginemos outras. Na internet, por ironia, há mais sugestões de epitáfios que de nomes para batismo. Em tempo, assim que aprofundar alguma noção sobre epitáfios na cultura dos povos originais brasileiros, poderei aludir a eles. Não tardará. Por obvio, fica aqui registrado o número medonho das tumbas anônimas e valas comuns das gentes escravizadas e exterminadas. A gigantesca maioria na História. Ainda preso à triste herança de remoção que cria mais lapides que mães, condivido alguns epitáfios.

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“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”

De Memórias Póstumas de Brás Cubas – romance de Machado de Assis – narrado em primeira pessoa pelo morto Brás Cubas.

“Eu já morri muitas vezes, mas nunca assim”.

epitáfio sobre o túmulo de um ator etrusco

“Se eu vir alguém no meu funeral com uma cara longa, nunca mais falarei com ele”.

Stan Laurel, da dupla Laurel & Hardy

“Ele está aqui deitado em algum lugar”.
Em referência a seu “Princípio da Incerteza”, segundo o qual não é possível indicar simultaneamente a posição e o impulso de um corpo

Werner Karl Heisenberg (1901-1976),físico teórico alemão, Nobel de Física de 1932 pela criação da mecânica quântica

“Além disso, são sempre os outros que morrem”.

Marcel Duchamp (1887-1968)

“Livre enfim, livre enfim,
Graças a Deus Todo-Poderoso
Finalmente estou livre”.

Reverendo Martin Luther King, Jr. (1929-1968)

“O que você será
estamos agora:
Aquele que nos esquece, esquece-se de si mesmo”.

epitáfio sobre o ossário por trás da paróquia de Fopponino, Piazza Aquileia, Milão, em memória daqueles que morreram na peste no século XVII

“Passante,
não lamente minha morte.
Se eu estivesse vivo, você estaria morto”.

Robespierre, revolucionário

“Não tente”.

Charles Bukowski

“Chamado ou não chamado”.
Deus está presente”.

Carl Gustav Jung

“Vou rir do meu riso amargo”.

Nikolai Vasilievich Gogol, dramaturgo e escritor

“Estou em uma trama”.

Alfred Hitchcock, cineasta

“Eu era alguém.
Quem, não é da sua conta”.

Tumba anônima

“Eu lhe disse que não estava me sentindo bem”

epitáfio sobre a sepultura de um hipocondríaco

“Eu nunca me arrependi de meu longo silêncio.
Eu só me arrependi quando falei”.

Epitáfio anônimo sobre uma antiga lápide romana

“A vida é uma piada e tudo prova isso.
Eu pensava assim uma vez e agora sei disso”.

John Gay (1685 –1732), poeta e dramaturgo inglês

“Jack Lemmon – por dentro”.

Jack Lemmon (1925-2001), ator estadunidense

“Davis Bette”.
Ela teve sucesso da maneira mais difícil”.

Bette Davis, atriz

a inscrição em seu túmulo foi-lhe sugerida por Joseph Mankiewicz logo após Bette ter participado do filme “All About Eve”, que o próprio Mankiewicz dirigiu. Sua atuação nesse filme lhe rendeu uma indicação ao Oscar e uma Palma de Ouro no Festival de Cannes.

“Pede-se ao anjo trompetista que toque alto: o falecido é difícil de ouvir”.

George Bernanos (1888-1948), escritor e jornalista francês.

“Aqui jaz um ladrão. Esta pedra foi comprada com dinheiro encontrado nele”.

epitáfio sobre o túmulo de um ladrão morto em um assalto, Estados Unidos

“Não chore…
Eu só fui antes de você”.

epitáfio sobre uma sepultura no cemitério de Olbia, Sardenha

“Leitor”,
se você procura seu monumento,
olhe ao seu redor”.

epitáfio em seu túmulo na Catedral de St. Paul, em Londres

Christopher Wren, (1632-1723), projetista, astrônomo, geômetra, o maior arquiteto da Inglaterra de seu tempo.

“Estou farto de ser estúpido”.

Paul Erdös 1 913 1 996, matemático húngaro, genialmente prolifico.

“S = k log Ω [Ômega]”

epitáfio em sua lápide no cemitério Zentralfriedhopf, em Viena

Ludwig Eduard Boltzmann (1844-1906) fisico, matematico e filosofo austriaco.

“Nós comemos, bebemos, gostamos!
Após a morte, não há prazer”.

Sardanapalo -Nome dado pelos gregos ao rei Assurbanipal, da Assíria(sec.VII a.C.).

A tumba do abolicionista Luis Gama não tem um epitáfio. Este é o monumento em sua memória no Largo do Arouche, São Paulo