Erica Migon e Mariana Lima estiveram no último sábado (2 de março), na Sede Roosevelt da SP Escola de Teatro, para uma conversa com os aprendizes sobre o dramaturgo americano Nicky Silver, sua peça de teatro “Pterodátilos”, o tema “personagem e conflito”, a questão da família nos dias de hoje, ligada ao pensamento de Lipovetsky sobre a Sociedade Pós-Moralista. Erica, que também é atriz, traduziu a peça para o português, juntamente com Úrsula Migon; e Mariana, encarnando a personagem Grace, esteve na montagem da peça, encenada há poucos anos, dirigida por Felipe Hirsh, ao lado de Marco Nanini e outros atores.
Acompanhei o debate com especial atenção, já que eu mesmo tinha estado ali na escola, uma semana antes, conversando sobre esses assuntos, desde o ponto de vista da psicanálise. Recolhi quatro apontamentos que insistiram em mim nos dias que se seguiram a esse encontro de 2 de março de 2013. Faço breves comentários sobre cada um deles, assim talvez contribuindo para a fertilidade daquele rico debate, coordenado pelo sempre elegante Chico Medeiros, concebido pelo Setor de Pedagogia da Escola, e organizado por Ivam Cabral, Joaquim Gama, Elen Londero e Dione Leal. Senão, vejamos.
1- Na peça em questão, uma família “disfuncional” é apresentada aos espectadores. O grau de loucura dessa família (e de violência e de falta de comunicação) é tal, que poderia parecer estranho que alguém se identificasse com ela. Mas, meu argumento: o valor de uma peça que retrata, entre outras questões, a falta de comunicação de uma família está justamente em levar o público a lançar um olhar de estranhamento na direção de sua própria família. Que a obra ilumine as porções escuras da vida do próprio espectador e o arranque de uma posição de conforto. Confesso que – como afirmei no dia 23 de fevereiro – a família silveriana me pareceu tão mais louca que a minha, de um lado, e de outro, ao mesmo tempo, tão mais saudável! Inquietação! A falta de comunicação e a surdez que se estabelecem num grupo familiar são um ponto cego invisível para um membro desse grupo. Há um ganho de valor capital quando o espetáculo nos leva a sublinhar uma zona surda de nossas próprias vidas. A família de Nicky Silver é mais louca, pelo exagero que ele imprime às violências que circulam ali – mas sempre com uma dose de humor, que torna palatável a nossa identificação com as personagens que habitam aquele universo. Porém, simultaneamente, aquela gente é menos louca, por ser justamente uma obra de ficção. Enquanto, pobre de mim, minha família é bem real. E é com ela que eu tenho de me haver todos os dias – não que eu não a ame! Longe disso… Eis a tragédia!
De outra forma, ficaríamos eternamente plantados numa cômoda poltrona, observando de longe a doença dos outros, celebrando nossa própria utópica saúde. Bem distante de mim, a desgraça é deles, graças a Deus! Sou limpinho e sou cheiroso!
2 – Não creio que o trabalho de Silver se caracterize por uma “dramaturgia gay”, somente porque nessa peça – e em todas as outras – personagens gays transitem pelo palco. Personagens “não-gays” também comparecem em seus trabalhos, mas tampouco é por essa razão que não acredito que sua obra se encaixe em qualquer categoria. Os nomes nos eximem de provar as essências! Ao contrário, as relações homoeróticas ali presentes são contingentes. Existem na obra porque existem na vida. E veiculam dramas humanos, e não dramas exclusivos de um grupo social, que desenharia uma problemática peculiar. Essa não-pertinência a um gueto faz com que a dramaturgia de Silver ganhe em qualidade. Ela não se dirige a um público específico, mas é feita de matéria humana: seu espectro é mais amplo, discutindo conflitos universais, com espantosa atualidade, independentemente do que cada espectador faz na cama (ou com quem). Tanto faz que haja sexo entre Todd e Tom. O que Silver faz é bom teatro, antes e mais que “teatro gay”.
Menos ainda interessa com quem Silver dorme, evidentemente! Afastar a obra de seu criador é o primeiro passo para se pensar o campo das artes.
3 – O trabalho do ator na composição das personagens…
Parece ter se desenhado, no último debate, duas maneiras de se construir uma personagem. Uma, de dentro para fora, buscando referências no interior do próprio mundo do ator/atriz. Outra, de fora para dentro, procurando referências e indicações no mundo “exterior” ao psiquismo do artista. Essa segunda maneira pareceria mais “racional” e menos “das vísceras”.
Ocorre que qualquer referência externa para composição de personagens só tem utilidade à custa de um trabalho de digestão. Canibalizar e desconstruir as informações é o lema! Na digestão, o alimento é destruído e separado, numa porção nutritiva que é transformada em si mesmo, circulando nas veias, e noutra porção não-nutritiva, que é eliminada. Aqui reside a sabedoria do corpo. O mesmo processo deve ocorrer com respeito a informações e a material simbólico.
Se assim não for, a referência externa engolida intacta pelo ator se converte num introjeto que o engasga e literalmente engessa sua possibilidade de atuação. Daqui se depreende a ideia de que, mesmo os processos que parecem se dar “de fora para dentro” – e que parecem “racionais” – exigem um monumental trabalho “das vísceras”! Vou além: todo processo teatral se dá de fora para dentro. Foi exatamente a “externalidade” da dramaturgia que fez do teatro a metáfora exemplar para a psicanálise. Teatro dos eus! Somos todos compostos de uma matéria estrangeira, externa, tragédia contemporânea! Onde buscamos cabelo, encontramos peruca! A grande inspiração de um artista está em rearranjar elementos velhos, e não em parir algo que jamais existiu. Os novos arranjos são novos até um limite. O inédito é inassimilável para os humanos! Deus não quis que o conhecêssemos, dissera Caeiro!
4 – A memória emotiva! As contribuições de Stanislavski para o teatro são imensas. Mas o conceito de memória emotiva talvez seja uma ideia passível de mal-entendidos (não para o mestre russo, que fique claro!). A memória das marcas pessoais da história de um sujeito/ator não é uma ruína arqueológica adormecida nos subsolos, aguardando paciente a sua revelação, aguardando ser mobilizada. A memória é também e sempre construída a cada momento. Assim, possuindo ou não uma memória emotiva que daria matéria à composição de uma personagem, o ator NUNCA está dispensado de um árduo trabalho de construção. Para se chegar ao contorno de um rosto é necessário suor. Não é mais fácil a um ator, filho órfão de pai e mãe, compor um personagem, filho órfão de pai e mãe, que a outro ator, cujos pais vivem bem e gozam de excelente saúde. A memória emotiva é construção!
Em todo caso, para finalizar, repito como provocação: a criação de uma personagem se dá de fora para dentro – mesmo quando parece brotar de dentro para fora, do seio da alma e do núcleo da inspiração do sujeito…
Alguém me perguntou: “Sergio, porque você não disse isso tudo no próprio sábado?” “Bem”, eu respondi, “só soube disso depois!”
Toda ideia nasce de uma bruma!
PS- recoloco meu espanto diante do que me pareceu ausência de degrau geracional na peça de Silver. Faço votos aqui para que sempre haja um default nas relações entre pais e filhos. Quero organizar uma manifestação em favor do muro, da porta, do degrau e das faltas. Uma homenagem em favor das mães que falham! Que desiludem. Que atrasam. Que não permitem coincidências. Ocuparemos a Roosevelt! Pela não horizontalidade entre pais e filhos. Que haja sempre segredo, que haja sempre o proibido, que a transparência jamais seja demais! Que reste sempre um enigma, matéria-prima do campo das artes e dos processos criativos! Em favor da opacidade que possibilita a fantasia!
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com