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Dramaturgia precursora de protagonismo feminino e tolerância religiosa: Lessing

Publicado em: 19/08/2025 |

[Memória escrita da essência de podcasts realizados para para a SP Escola de Teatro

quando ainda não eram mídia internáutica costumeira] 

Mauri Paroni

[Voz de Sylvia Soares]

Palavra em cena. História dramática e a nossa vida cotidiana.

[Voz de Mauri Paroni]

Tempos de intolerância com quem pensa e crê de maneira diferente – O primeiro Palavra em Cena deste ano é dedicado a Gotthold Ephraim Lessing, importante autor e crítico alemão do século XVIII; do qual, infelizmente, pouco se fala hoje. Como crítico, foi o primeiro a escrever segundo a própria consciência intelectual.

Não se importava com os interesses alheios adversos a tudo que acreditava. Isso é raro até hoje – comentava eu com a saudosa e brilhante Christiane Riera (1968 –2012), a quem a nossa escola tanto preza. Seus artigos críticos fizeram-no respeitado por poucos e temido por muitos.

Combinavam trabalho artesanal com visão intelectual eloquente, viva, brilhante. Jamais denotavam qualquer posição incerta ou obscura, jamais mera defesa ou contra-ataque. A quem o acusava, disse “ Se eu fosse contratado como juiz na arte, esta seria a minha sentença escrita.” Gentil e encorajador para os iniciantes, admirado por dúvidas – ou duvidando com admiração, para os mestres era positivo e crítico. Desdenhava charlatões. com os desonesto”. Se o juiz na arte não possuir apenas um tom de sentença para todos, será melhor não possuir nenhum.”

Lessing foi o primeiro autor do Iluminismo a celebrar a importância da mulher e de seu novo papel na sociedade que estava em transição profunda do mundo rural para o mundo urbano. A peça em que ele trata e consolida isso é “Mina von Barhelm”, ou A sorte do soldado, é uma comédia em cinco atos escrita em 1763. No final da Guerra dos Sete Anos, saxões derrotados deixaram de pagar o pedágio de guerra ao reino da Prússia.

O responsável pela coleta daquele tributo, o major Terheim, em um acesso de generosidade e decidiu antecipar o pagamento. Esse gesto faz a nobre saxã Mina von Barhelm se apaixonar. Ela é correspondida pelo major. Mas há uma guerra de verdade entre os dois e, temendo pela vida do amado, Mina vai procurá-lo em Berlim, depois de um tempo de separação. O major era inválido por um ferimento de guerra. Além disso, por causa de seu ato honroso, transformou-se em um suspeito de corrupção, segundo o secretário da defesa. Foi, portanto, d e m i t i d o p o r u m a a c u s a ç ã o injusta. Desonrado, recusa a casar-se com Mina para não transferir sua aparente indignidade a ela. A mulher, corajosa e astuta, manobra para que o major Terheim seja reabilitado – para o seu casamento – pelo Kaiser Frederico II. A p e ç a t r a z u m a m u l h e r p r o t a g o n i s t a e p s i c o l o g i a n a s p e r s o n a g e n s – i s s o m u d o u definitivamente o teatro alemão.

Pausa.

“Nathan, o Sábio” foi um drama publicado em 1779 . A história lembra o judeu Melquisedeque – como contada pelo italiano renascentista Giovanni B o c c a c c i o n o t e r c e i r o a t o d o Decameron, a sua obra-prima. Em Jerusalém, durante a Terceira Cruzada, o drama descreve como o sábio comerciante judeu Nathan, o sultão Saladino e um anônimo templário se entendem. As três personagens principais representam o judaísmo, o islamismo e o cristianismo. A mais importante ideia da peça é a tolerância religiosa. A
representação foi proibida pela Igreja d u r a n t e a v i d a d e L e s s i n g e , obviamente, sob o regime nazista séculos depois.

Nathan conta sobre um anel mágico, relíquia de família, a ser doada de um pai para o filho que ele mais amava. Mas o homem tinha três filhos e os amava também. Prometeu, portanto, a herança para todos os três – Ele e n c o m e n d o u d u a s c ó p i a s indistinguíveis do anel original. Em seu leito de morte, deu um anel para cada um deles. Os irmãos muito discutem sobre quem possui o anel de verdade. (Num conto final, o melhor é ouvir a cena-mãe desta peça, interpretada pelo ator Rubens Teixeira.)

Pausa.

A técnica de Rubens, experiente ator do Teatro Brasileiro de Comedia, torna possível a compreensão prazeirosa daquela dialética. Ouvinte, desfrute deste texto longe das banalidades e modismos escritos sobre o tema.

[Participação especial do veneziano Alvise Camozzi no papel do Sultão Saladino.]

– Muitos e muitos anos atrás vivia no Oriente um homem que possuía um anel de valor incalculável, fruto de mãos habilidosas. A gema era uma opala iridescente de cem cores, a qual possuía a virtude secreta de fazer amáveis diante de Deus e dos homens quem a portasse com a mesma confiança; Meio milagre, portanto, se esse homem, esse oriental, não tirasse nunca o anel do dedo e estudasse o modo para que este permanecesse sempre em sua casa. Tal modo foi o seguinte: ele deixou o anel como herança ao seu filho predileto – e que, de geração em geração, esse predileto, sem menção à ordem de nascimento e somente em virtude do anel, fosse o chefe da casa. Assim, de filho em filho, finalmente o anel caiu na mão de um tal que tinha três filhos igualmente devotos. Este não podia fazer menos que amá-los todos igualmente, que cada um a turno se encontrasse a sós e sem os outros dois a disputar o sensível coração do pai. Este parecia-lhe mais digno do anel. Até que ele, de fato, teve a pia fraqueza de prometer o anel a cada um deles. Foi-se adiante por um bocado, mas a morte se aproximava.

Eis o bom pai com o d i l e m a . A p r e o c u p a ç ã o d e n ã o entristecer dois de seus filhos, os quais confiavam plenamente em sua palavra, o atormentava. O que ele faz?Manda, em grande segredo, chamar um ourives, ao qual encomenda dois o u t r o s a n é i s a o m o l d e d o primeiro, recomendando-lhe não economizar dinheiro nem trabalho para que fique idêntico àquele. O o u r i v e s c o n s e g u e perfeitamente. Quando ele entrega a obra, nem mesmo o pai consegue discernir o anel primitivo entre os três. Muito satisfeito, chama seus três filhos e dá a cada um a sua benção e o seu anel. Morre. Assim que o pai morreu, cada um levava o seu anel e, portanto, desejava ser o chefe da casa. Fizeram-se investigações, surgiram Lides e Querelas, mas o verdadeiro anel não se pôde identificar.

Como hoje não se pode i d e n t i fi c a r a r e l i g i ã o verdadeira. Como? Seria esta a resposta à minha pergunta? Pelo menos, é a minha justificação, se não sei distinguir entre os três anéis que o pai encomendou com a intenção de que não se pudessem distinguir. – Os anéis! Não brinque. As religiões que eu acabei de citar distinguem-se perfeitamente pelos costumes, pelos alimentos e pelas bebidas. É só isso. Só isso. Não no fundamento. Por que essas religiões não se fundam, as três, na história escrita ou repassada? E sobre o que se funda a história, se não sobre a fidelidade e sobre a fé? Ora, qual fé havemos de colocar em dúvida?Aquela daqueles de cujo sangue surgimos e que desde a infância nos deram tantas provas do seu amor, que nunca nos enganou, exceção onde o engano nos era saudável. Como poderia eu,  portanto, ter menos fé nos meus pais daquela que você tenha nos teus?

Ou vice-versa, posso eu pretender que você desminta os teus pais para que eu não tenha de desmentir os meus? Isso que eu digo a ti e a mim, vale também para o cristão? Não vale? Mas voltemos aos nossos anéis. Os filhos, portanto, querelaram-se cada um e jurou ao juiz do tribunal ter recebido o próprio anel diretamente da mão do pai. O que era verdade. Depois de haver já muito recebido a promessa de ser destinado ao lugar privilegiado que o anel implicava, isso também era verdade. Ora, raciocinava cada um dos filhos, o pai não pode ter me enganado. Antes de suspeitar isso dele, um tão amoroso pai, eu devo acusar de falsidade os meus irmãos? Quão disposto eu estou sempre a pensar se não boas coisas deles? Saberei bem descobrir os traidores para vingar-me? Disse o juiz. Ou me trazem aqui
imediatamente esse pai ou os expulso do tribunal- Acaso acredita que eu e s t e j a a q u i p a r a a d i v i n h a r a s coisas? Ou devemos esperar que o anel autêntico abra a boca e fale? Mas alto lá, vocês me dizem que o anel genuíno tem o mágico poder de deixá-los amáveis aos homens e a Deus. Então, o que decide? Já que os anéis falsos não possuirão tal dom, quem é entre vocês o herói dos outros dois? Digam! Ah, ficaram quietos…

Os anéis não têm poder para os externos? Nesse caso, são todos vocês. charlatanizadores dos
charlatões. Segundo a palavra de S a n t o A g o s t i n h o , “ d e c e p t i deceptores”. Vossos anéis são todos f a l s o s e o v e r d a d e i r o a n e l f o i perdido. Para esconder a perda e tentar remediar, vosso pai fez fabricar três no lugar de um. Portanto, se vocês não se contentam com o conselho no lugar de sentença, sumam-se! O meu conselho, porém, é que vocês aceitem a coisa como está. Cada um de vocês recebeu o anel diretamente do pai e cada um de vocês o tome por verdadeiro. É possível que o pai não quisesse tolerar por mais tempo dentro de sua casa a tirania daquele único anel. É preciso que ele os tenha amado igualmente a todos os três, porque não quis humilhar dois para exaltar um terceiro. Está bem. Imitem agora vocês aquele amor incorruptível e livre de prejuízos. Compitam entre vocês para evidenciar a virtude daquele anel.

S u s t e n t e m t a l v i r t u d e c o m a temperança, com a suportação cordial, com a caridade ao próximo, com a resignação à vontade de Deus. E q u a n d o a s v i r t u d e s d o a n e l manifestarem-se nos filhos e nos filhos dos filhos daqui a mil anos, eu os convido a voltar a este tribunal. Um homem mais sábio que eu aqui estará sentado e pronunciará a sentença, assim disse aquele juiz modesto: – Nathan, os mil anos previstos pelo teu juiz ainda não se passaram. Aquele tribunal não é o meu. Vai, vai, mas seja sempre meu amigo.

[Voz de Sylvia Soares]

P a l a v r a e m c e n a a g r a d e c e a participação de Alvise Camozzi e Rubens Teixeira. Palavra em cena, história dramática e a nossa vida cotidiana.

Apresentação de Maurício Paroni de Castro. Especial para SP Escola de Teatro, Centro de Formação das Artes do Palco