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Diário da Cena: O Capítulo 9

Publicado em: 02/10/2017 |

“O papel histórico do teatro num tempo dominado pela alienação e pelo consumo.”

Hoje, por excesso de trabalho, tenho pouco tempo para leitura. Antigamente eram quatro ou cinco horas por dia. Hoje, abro meu tempo com britadeira. Fiz isso neste último feriado. Duas horas sem atender ao telefone, nem pensar em outra coisa. Abri o recém-ganho “História, Teatro e Política”, série de artigos com diálogos entre as artes e outros campos do fazer artístico. Foi organizado por Kátia Paranhos e editado pela Boitempo. Movida pelo respeito ao trabalho de Maria Silvia Betti, docente da USP, tanto quanto por minha admiração pela obra de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), fui direto ao Capítulo 9, com o seguinte título: “O Corpo a Corpo de um Dramaturgo em Tempos Sombrios: Concepções Dramatúrgicas no Trabalho de Oduvaldo Vianna Filho na Fase Pós-AI-5.”

Nesse capítulo, o pensamento teórico de Vianninha ganha análise criteriosa de Betti, a partir do artigo escrito por ele na década de 70: “O Meu Corpo a Corpo” (Revista Sbat, n. 387, maio/jun 1972), que acompanhou a apresentação de seu monólogo “Corpo a Corpo”. Maria Silvia abre algumas chaves para se penetrar no pensamento de um dos mais importantes dramaturgos brasileiros. Engajamento e nacionalismo não eram meras palavras de retórica à época, mas formas efetivas de ação nos campos da arte e da política. Vianninha criou em plena ditadura. Muitas de suas obras foram censuradas (“Os Azeredos Mais os Benevides”, “Moço em Estado de Sítio”, “Corpo a Corpo”, “Papa Highirte”, “A Longa Noite de Cristal” e “Rasga Coração”). Várias delas só foram montadas anos depois de sua morte.

Vou percebendo que o que está em jogo nesse artigo é ressaltar, como foco da ação política de Vianna, “o papel histórico do teatro num tempo dominado pela alienação e pelo consumo”. Havia uma apreensão em Vianna e ela recaía sobre os espetáculos de vanguarda à época. Neles, detectava uma concepção do teatro como mundo à parte, desenraizado da concretude da sociedade à sua volta. Maria Silvia Betti mostra como o dramaturgo reconhecia a potência experimental dos espetáculos vanguardistas, ao mesmo tempo em que criticava, nesse tipo de teatro, a visão deformada, como um mundo separado, livre, aberto. Não mais como componente de nossa vida espiritual.

Para ele, salienta Betti, “o principal desafio do teatro como linguagem artística sempre foi o de figurar as lutas e a materialidade histórica do mundo contemporâneo, abordando-as da perspectiva dos explorados”. Completa: “Os avanços artísticos na direção de formas novas não se desligavam da necessidade de representar os processos sociais concretos e suas contínuas transformações”.

Nisso, fazia a crítica a expoentes da época, como aos espetáculos do Teatro Oficina, que focavam na ideia de superação dos princípios da racionalidade como base para o trabalho de criação. Espetáculos esses que tinham como características fazer a apologia à deseducação, ir contra o teatro político e a favor da excitação do sentido estético (happeningsperformances); que valorizavam o onírico, o imagético e o ritualístico em lugar do texto e da narrativa. Ao contrário de Vianninha, que como homem de forte posicionamento ideológico, valeu-se do teatro brechtiano, no que ele tinha de épico e dialético, extraindo sua força da “historicização, da percepção e da representação investigativa e analítica do mundo”.

O corpo a corpo do autor não estava num artigo, mas num projeto de vida. No final do artigo, a ênfase na ideia de gratuidade do ato teatral: “nosso objetivo é a gratuidade/a gratuidade é a máxima aspiração do homem/a gratuidade não é a ignorância da realidade/é o seu controle”.

Enquanto termino a leitura do artigo, certifico-me de que não quero e não posso mais absolutamente prescindir do tempo do estudo, da leitura e da escrita. Lutar a pontapés para abrir esse tempo é mais uma tarefa com que me desafio viver a cada dia.