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Dedicado à Cacilda: Grummus merdae – vestígios do dia, a marca do bandido…

Publicado em: 30/09/2022 |

HOMENAGEM À CACILDA – Texto escrito há mais de dez anos [março 2012] – e postado no site da SP Escola – por Sergio Zlotnic

1 – Grummus merdae
Há regras sem exceção. Todo bandido, depois de assaltar uma residência, obra! Trocando em miúdos, ele defeca ali. Não num vaso sanitário, pois seu gesto é uma performance, uma instalação, tem que ter glamour. O bandido evacua sobre a mesa da sala de jantar, por exemplo. Para Freud, as razões disto são duas. A primeira, mais fácil de compreender, atribui à obra uma agressão. A distância entre os extratos sociais promove ódio entre abastados, de um lado, e desfavorecidos, de outro. O ladrão tem raiva da abundância que encontra na casa assaltada. A segunda razão é menos evidente, mas de uma lógica irretocável. Retroativamente, a obra é uma reparação infantil pelo mal afligido. Um prêmio ao dono da casa. A esta bela obra de arte, Freud dá o nome de grummus merdae. “Roubei, mas deixo um presente a você”, diria o ladrão, como a criança que dá aos pais um lindo cocô todo santo dia, logo cedo de manhã (quando é boazinha).

2 – Clínica psicanalítica
Pois. Um paciente chegou ao meu consultório, um dia, queixando-se de ter sido recentemente assaltado. Enquanto estivera ausente, um ladrão entrou em seu apartamento e levou o que conseguiu. Muito sábio, ciente do grummus merdae, pois sou um doutor, o que não é pouca coisa, indaguei pela universal assinatura do bandido: cadê o presente? Mas o paciente não havia constatado nada de diferente em sua residência. Além dos vazios pela perda de seus objetos e valores, nenhuma nova instalação, nenhum vestígio. Aparentemente.
Como eu insistisse muito (“cadê o cocô?, cadê o cocô?, cadê o cocô?…”), tive ainda de ouvir, ao final: “O sr só pensa em cocô, dr zlot”, soltou o paciente, revoltado, ao sair do consultório.
Bem, na sessão seguinte, dois dias depois, ele chega de-vas-ta-do: “Doutor, encontrei a merda do bandido”, me conta. O ladrão havia defecado num balde e, em seguida, guardado o continente (com o conteúdo), embaixo do tanque, na área de serviço do apartamento. Quando precisou lavar roupa, o dono da casa se depara com a fantástica obra, já velha e seca. Donde se conclui: nessa regra, não há exceção.

3 – Cacilda
Sigo mais um pouco. Cacilda – veja só – fez cocô no terceiro andar da SP Escola de Teatro, no Brás, num dia do ano da graça de 2010. Ali, no quadrado anexo à escada, havia uma exposição de fotografia. E justo eu, que presto tanta atenção quando caminho pelas calçadas da cidade, por enorme infelicidade, pisei no cocô de Cacilda (porque pensei que estava andando em terreno seguro e, até, sagrado; afinal, e os deuses do teatro? Por onde andam?). Nesse dia, fiz o que pude pra limpar o tênis. E quis acreditar que, como dizem, “dá sorte”. Dediquei a aula a explicar o grummus merdae de Freud e de Cacilda, que ressuscito aqui e divido com o leitor.
Para quem não é da SP Escola, explico: Cacilda é canina. Tem uma história. E quatro patas. Pertence à Instituição e está ali desde o princípio. Recebe na cabeça e no coração uma média de 300 afagos por dia dos estudantes e dos funcionários do Brás.

4- Réquiem
Tendo vivido longa vida dedicada aos palcos e aos bastidores dos palcos, adotada por todos, soube agora que ela acaba de falecer! Encontrei este escrito antigo, que compartilho aqui como forma de homenagem.
Para ser preciso, os grandes curadores de Cacilda foram Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez – que poucos anos depois também adotaram Chico, um labrador. Ele também tem história – e também é dos palcos. Uma vez, entrou no teatro dos satyros, no meio de uma peça que levávamos ali, numa cena que – ironicamente – dizia respeito a um cachorro. A atriz fala a palavra ‘cachorro’ – e Chico entra, como se tivesse sido combinado. O público achou que fosse de propósito! Acidente, acaso, sorte, erro. São os elementos que entraram para nossa trupe com Cacilda e Chico. Entraram para tornar o coletivo mais rico. Mas isto, conto depois…

5- merda
Pra finalizar, que todos os deuses do teatro [e de fora do teatro] acompanhem Cacilda em sua ascensão! Ela leva doze anos do percurso desta revolução pedagógica chamada SP Escola de Teatro –, que segue na Terra seu caminho, com amor… O luto engorda aqueles que ficaram…
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6- saudades
Na figurinha de Cacilda, eu tenho saudades daquele tempo, o início de tudo, em que as coisas começavam, eram esboço, rascunho, cheio de aposta e de fé. O cheiro de futuro que pairava no ar. Brisa que a juventude canta!
Merda!

 

Texto original na íntegra  AQUI