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Cronos, Caos, Memória (II)

Publicado em: 22/05/2023 |

Cabeçalho com o escrito "Chá e Cadernos" e abaixo uma xícara de chá.

Chá e Cadernos 200.1
Mauri Paroni

Direto ao assunto memória:
Ao fim de mais um dia de biblioteca, num canto preferido, aquele em que pude despedir-me de minha mãe nesta existência – bibliotecária e normalista ali formada em 1953; comparei duas angústias profundas. A primeira era de ela lembrar-se, setenta anos depois de ocorrido, da severidade de seu professor de latim naquela mesma sala, o que a fez desistir de encontrar-se com seu primeiro namorado. Naquele tempo, eram encontros emocionais em que – costumeiramente— mal se tocavam as mãos. A segunda angústia era a do eu teatral deste que escreve, dirige e atua, imaginar o que será do mundo artístico com o advento da IA.

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Esperando pelo serviço Atende, que me insta vigilância sob o úmido vento da tardinha, detonador uma pneumonia que quase me leva embora de verdade – perdi a conta desses “quase”. Não me angustio com isso por sempre admirar a vivacidade de estudantes que terminam suas horas e rumam a projetos, discussões, trabalhos, sobrevivências, identidades e políticas. Sempre as admiro, chegam em breves exclamações e fluxos vitais. Lembram-me o passar do tempo, da época, da história e da angústia. Passam adiante, vivem dentro da gente de palco, que, de certa forma, impede o deprimente escoar da ampulheta. Passa a angústia e resta a memória. Angústia ali organizada em arte, feliz ou não, boa ou não, performática ou não. Existe e festeja, pois a sua memória nenhuma IA poderá criar ou substituir seu corpo. Qual batata frita em banha de porco, com casca suja de terra, indelevelmente inscrita na memória que sabe que um dia morrerá, que não está inscrita num algoritmo a beneficiar o palco a que o mundo doentio da pós verdade traz consequências letais.

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Fotografia preta e branca do rosto de Wislawa Szymborska

Parelho este raciocínio a uma grande poeta polonesa, prêmio Nobel de 1996: Maria Wisława Anna Szymborska (1923-2012).

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Nada Acontece Duas Vezes

“Nada acontece duas vezes
Nem acontecerá. Por esse motivo
nascemos sem habilidade
E morreremos sem rotina.

(…)

Nenhum dia se repetirá,
não há duas noites iguais,
dois beijos iguais,
dois olhares idênticos nos olhos.

(…)

Ontem, quando seu nome
alguém disse em voz alta (…),
foi como se uma rosa
caísse de uma janela aberta.

(…)
Uma rosa? (…) Aparência (…)?
(…)Flor? (…) Pedra?

Má hora, por que
Tão ansiosa se agita?
Você vai passar.
Você passa.
(…)

Sorrindo, abraçados,
havemos de concordar,
mesmo sendo diferentes
como duas gotas de água pura.”

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Mais um pequeno trecho de Wislawa:

“Ouça
O quão forte o seu coração bate em mim.”

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Traduzi do meu jeito. Como percebi que o coração dela bateu forte em mim. Muito diferente dos doze jeitos que apps de IA traduziram. Quero dizer: nada de coração ali. Nada pode ser substituído, mesmo que possa ser utilizado. A angústia desapareceu depois de dias de textos da poetisa.

Editei, cortei, elidi, e por tal peço perdão. À parte aquelas cinco ou seis palavras em polonês que decorei ouvindo as tremendas broncas ocasionais esbravejadas pelo mestre nas lições milanesas de Tadeusz Kantor, procurei tudo em dicionários, versões em inglês, italiano, francês e apps de pronúncia dessa grande artista. Enfim, escrever, traduzir, criar – muito além da possível IA, por horas passadas em estudo persistente, em relação crítica e afetiva com mestres de juventude, em viagens e aprendizado por quase todos os continentes do mundo, em tempo e trabalho possibilitado por esta SP Escola de Teatro. Futuro “desangustiado” cultiva-se, como recomenda o universalmente revolucionário Voltaire do brevíssimo “Candido”.

Tentei errar, reconstruir, instruir, corrigir aqueles textos através de IA. Ficaram não inteligíveis, insuportáveis, estúpidos e “certos”, totalmente alheios aos originais. Adquiro a certeza que nerds acabarão substituídos por essas máquinas. Muitos aspectos serão, finalmente, meros contratos de adesão, aquelas letrinhas infames que se assinam para perseguir vítimas na vida quotidiana, na net, nas religiões organizadas eleitoralmente, nas maternidades chiques. Nos cubinhos do bolinha. Nas milícias repaginadas.

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Sugiro originais a quem quiser a aventura irrepetível que é criar. Com IA. Sem IA. Com angústia. Sem angústia. Sempre com memória. Sempre. Mesmo que jamais se repita:

Cabeçalho do poema Nic dwa razy, de Wisława Anna Szymborska

“Nic dwa razy
Nic dwa razy się nie zdarza
i nie zdarzy. Z tej przyczyny
zrodziliśmy się bez wprawy
i pomrzemy bez rutyny.

Choćbyśmy uczniami byli
najtępszymi w szkole świata,
nie będziemy repetować
żadnej zimy ani lata.

Żaden dzień się nie powtórzy,
nie ma dwóch podobnych nocy,
dwóch tych samych pocałunków,
dwóch jednakich spojrzeń w oczy.

Wczoraj, kiedy twoje imię
ktoś wymówił przy mnie głośno,
tak mi było, jakby róża
przez otwarte wpadła okno.

Dziś, kiedy jesteśmy razem,
odwróciłam twarz ku ścianie.
Róża? Jak wygląda róża?
Czy to kwiat? A może kamień?

Czemu ty się, zła godzino,
z niepotrzebnym mieszasz lękiem?
Jesteś – a więc musisz minąć.
Miniesz – a więc to jest piękne.

Uśmiechnięci, współobjęci
spróbujemy szukać zgody,
choć różnimy się od siebie
jak dwie krople czystej wody.”

De Wisława Szymborska

Fotografia preta e branca do rosto de Wislawa Szymborska

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Ou, para sentir a sua musicalidade: