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Cronos, Caos, Memória (I)

Publicado em: 06/04/2023 |


Chá e Cadernos 200.0
Mauri Paroni

Eratóstenes (276-194 a.C.), o cientista antigo que mediu a circunferência da terra observando a natureza e o Sol no Rio Nilo, África, sempre ali, ressalto, estava longe do mundo da terra plana do senso comum – foi um dos que dirigiram a biblioteca de Alexandria. A Rainha Cleópatra também: era uma intelectual que conversava nas línguas dos chefes de estado que encontrava. Entre os quais Júlio César. A mitologia sentimental do pós guerra do século XX fez dela uma “namoradinha” – dele e de Marco Antonio. Serve à ignorância “sentimentalizar” o poder da mulher. Cleópatra era uma mulher no poder – seu irmãozinho Ptolomeu quis usurpar-lhe o trono. Guerra civil no país mais importante do Mediterrâneo Oriental, de onde saía a maior parte do trigo do mundo antigo. Quer dizer: pão, cultura e cerveja, tudo do lado africano do Mar Mediterrâneo. César entrou na briga quando a sua pequena frota foi cercada e ele incendiou seus oponentes abrigados no porto. A torre da biblioteca estava ali também. O fogo foi impiedoso. Salvou-se o que havia sido separado, por falta de espaço, no Serapeu. Reunia todos os pergaminhos dos muitos navios que vinham a Alexandria. Os reis ptolomaicos os “pediam emprestado” para dar a seus copistas. Surrupiavam o original e devolviam uma copia provavelmente perfeita. Tinham noção da importância da memória na Cultura e na Politica. Lembro que a biblioteca de Alexandria foi o primeiro grande projeto de Alexandre, aluno do “estrangeiro e feio” (sic) Aristóteles, antes de partir para as suas conquistas e morrer jovem.


Ruínas do Serapeu, templo da padroeira Serapis, para onde a Biblioteca de Alexandria enviou parte de sua coleção após ficar sem espaço de armazenamento

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A biblioteca era um centro de aprendizado. Havia escola de tudo, se pesquisa e experimentação a partir do que se conhecia. Era físico, era pedagógico. O espírito da biblioteca era pedagógico e fisico, muito alem de um simplório acúmulo de conhecimento. Era a memória eletiva da vida quotidiana das pessoas comuns; os pergaminhos podiam ser reescritos; melhor, reinscritos, linguagem sobre linguagem. Era coisa dinâmica, permitiam dialética, crítica e dependiam do corpo. Do lado, jazia o altíssimo farol de Alexandria, simbólico e real, que orientava a navegação noturna até o porto. Em seu topo, brilhava a luz do fogo sob a estátua de Netuno e seu tridente, (psi, o símbolo da psicologia). A luz provinha da queima de esterco, que ali chegava através de um sistema hidráulico de exímia construção. Recado simbólico dos bons.


Mosaico romano de Netuno (Museu Arqueológico Regional de Palermo).


Genova, antigo porto, Carranca da escuna utilizada no filme dirigido por Roman Polanski – “Piratas”.

Ligada ao inconsciente. A religiosidade afro sub sahariana reserva alta estética, poética e ética ao tridente, instrumento de orixá Exu, que liga a mãe terra às divindades – Desfile carnaval 2022 da escola de samba campeã , Grande Rio.


Foto ilustrativa da net

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Sugestão do inconsciente, a concretude assusta o império da abstração virtual do celular. Nem mais enuncia-se o seu conceito-nome ,“telefone” – som à distância. Mas distância é fato concreto vencido por navios cargueiros imensos. Sem a contemporânea e gigantesca mobilidade do transporte de mercadorias nos oceanos, canais, mares, isso não poderia ser “real” – ou seja, materializar-se. Aqui subentra questão do território – comparece a nossa velha conhecida e necessária síntese entre o real e o virtual. Sem o tráfego material, atolamos na retina movediça da posteridade virtual, líquida, num pântano de pesadelo. Quando se compra, hoje, uma mercadoria, a transação acontece virtualmente num app – via conceito, design, idealização de seu consumo, mas… tem consequências materiais incongruentes, desconectadas, confusas. Gera desespero enganoso, depressão individual, cegueira e “segurança” oferecida por determinadas figuras mitológicas feitas reais – autocratas de regimes ditatoriais pontuados por bombas e guerras. Vemos isso há milênios – consumismo perdido no tempo do atrito crítico e da arte consequente.

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Nosso campo, o da arte, é oposto: estamos na criatividade, na síntese da linguagem. Se nesta mantivermos coerência, seguiremos caminhos casuais, mas ligados entre si no mundo submerso do inconsciente, que obedece a uma lógica não necessariamente racionalista, mas intuitiva e provocatória. Exemplos: road movies, circulação de espíritos e revoltas, arte coreográfica da sobrevivência no convés dos navios negreiros, engajamento, liberalismo, lundu, jazz… Mundo e arte contemporânea não existiriam como o conhecemos sem que materialmente ocorressem suas realizações artísticas ou artesanais.

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Grande ironia passa pela mente ao lembrar de um poeta caolho genial que narrou a submissão de outros mundos, lugares e aniquilação de civilizações autóctones versus um pioneiro antropólogo estruturalista que analisou dois lados mitológicos onde um foi espaço de visão reservado ao outro de si. Este foi Claude Levi Strauss (1908-2009) em Historia de Lince. Essas memórias estão reservadas aos próximos artigos. Antecipo somente um trecho inicial de Os Lusíadas e outro de Tristes Trópicos.

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Da ideia narrativa de Luís de Camões (1524-1580) sobre a edificação de um império que o rei que a patrocinou provavelmente pouco dela percebeu:
”As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
[…]”

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De Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, tradução Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo, Companhia das Letras,1996:

“ (…) Conto entre minhas mais preciosas lembranças, não tanto uma expedição a uma região desconhecida do Brasil central, como uma caminhada ao longo do flanco de um planalto de calcário em Languedoc para determinar a linha de contato entre dois estratos geológicos. Era algo bem diferente de uma caminhada ou de uma simples exploração do espaço. Foi uma busca, que teria parecido incoerente para algum observador não iniciado, mas que eu considero como a própria imagem do conhecimento, com as dificuldades que ele envolve e as delícias que ele proporciona. Toda paisagem aparece em primeiro lugar como um vasto caos, que deixa a pessoa livre para escolher o significado que se quer dar a ela. (…) “ (*)

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Continuaremos adiante por digressões. Terminamos aqui o número 200.0. Enfim, mas não menos importante: a numeração “ponto – numeral” foi uma ótima sugestão de Ivam Cabral, diretor executivo da SP Escola de Teatro, que ajudou a definir e sintetizar o espírito informalmente progressivo e eclético destes artigos em forma de pequenos ensaios.

(*)Fonte
https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=2868598