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Criar é matar a morte

Publicado em: 02/06/2014 |

I – Um espetáculo de teatro é algo que se dissolve e se consome, em ato, conforme a máxima de Gore Vidal: “O fato está perdido no momento mesmo do acontecimento”. Trata-se da arte do efêmero, como tantos já disseram.

Não é difícil, por esse caminho, aproximar as artes do palco ao exercício da clínica psicanalítica: ali, como aqui, produz-se algo “irrepetível”, irrecuperável, destinado ao esquecimento. “Puf!”.

Contardo Calligaris dedicou seu livro “Cartas a um jovem terapeuta” aos seus pacientes. “Mais especificamente”, em suas palavras, “àqueles que passaram pela experiência [psicanalítica], ganharam uma certa vontade de morder a vida com mais gosto e, enfim, como acontece nos melhores casos, esqueceram que a experiência aconteceu, esqueceram meu nome e minha cara” [“editado” por mim].

Segundo o artigo recente de Fernanda Torres, no jornal Folha de S.Paulo, de 30 de maio, o teatro seria uma espécie de “missa de corpo presente”. Acontecimento que se acaba e se morre e se suicida e se entrega em sacrifício imediatamente.

Numa combinação cujo intuito é o de produzir mais vida, esquecimento e morte se articulam de uma maneira peculiar tanto no teatro quanto na psicanálise.

II – Sabe-se que o teatro não aceita ser registrado. Pode-se fotografar e filmar uma peça teatral, claro. O resultado, entretanto, será sempre uma pálida lembrança do espetáculo ocorrido. No melhor dos casos, em suma, o resultado é um não teatro.

Aqui se insinua a questão controversa do registro: memória documental que – ao inscrever – necessariamente cristaliza. Razão pela qual Freud separa, entre outras, duas instâncias no psiquismo: percepção e memória. E insiste em que essas duas funções jamais podem coincidir.

A psicanálise valoriza as aparições da memória involuntária. Aquela que se dá na contramão do enaltecidoNon Ducor Duco! “Não sou conduzido, conduzo”, diz a vaidade! A clínica de Freud não quer nada com a memória da anamnése e com as suas histórias oficiais… É a verdade da ficção o que nos interessa e alimenta.

E, ao contrário, para se chegar a essa verdade é necessário des-registrar. Des-apreender. Desconstruir! Não inscrever – para não engessar… Entregar-se ao fluxo e ser tomado de surpresa. Este é o roteiro para criar: sem mapa, sem memória, sem desejo. Assim se conduzem analista e ator. Na corda bamba.

Como uma receita gastronômica que sugerisse, ou ordenasse: “jogue fora esta receita antes de ler”! E mais: “Para uma boa refeição, antes de começar a cozinhar o seu almoço, siga estas etapas: durma, ronque, sonhe, acorde e improvise”!

III – Criatividade supõe uma posição “traumatizável”, exposta e vulnerável do artista criador. Vulnerabilidade que o sonho traz, donde a ideia de que se durma antes de realizar alguma coisa de valor. O artista tem de consentir em se deixar afetar pelos acontecimentos, sem escudo de proteção, colocando-se poroso e permeável, com máxima abertura. Dissolver censuras e críticas; julgamentos e preconceitos. O artista tem de separar-se de si, coisa que se faz com o corpo, mais que com a cabeça. Tem de esquecer o que sabe… Tem de conter a sua compulsão à lógica, nitidez, contorno… Conter a compulsão ao sentido e à direção.

Há algo de “desamparo” na prescrição: desafiando o proibido e o secreto, o artista se põe alvo de altas magnitudes de energia mobilizadas nesse jogo de risco. Alquimia que opera um pequeno milagre: a obra finalmente produzida tem autonomia própria. E autoria duvidosa. Ultrapassagem! Ao se deixar conduzir, o artista se assiste ultrapassando a si mesmo, num salto épico. Ou senão, quem o ultrapassa?!

“É sempre o outro chegando antes de mim”, dizia Artaud. Sua aflição parece relacionada à intuição de um “roubo” (nas suas palavras) inerente ao fenômeno criativo. Nos sonhos, na vida, na arte, ao avançar longe o bastante, o sujeito se depara com alteridades de difícil absorção.

Mas o dramaturgo francês sentia-se especialmente angustiado com outra constatação: uma poderosa inércia que com demasiada frequência domestica até mesmo as mais fantásticas criações. Engrenagens sociais hipnogênicas. Como uma peste ao avesso que, ao invés de contaminar, esteriliza – num amortecimento que nos poupa daquelas epidemias férteis. “A verdade é suja e está na sujeira”, talvez Artaud dissesse…

Artaud desejou sua obra como um aborto que driblasse essa decadência – destino de muitos produtos bem nascidos. “Que meu produto não decaia em obra!”.

Adoecer (no palco e fora dele) parece ser a perda da capacidade de se surpreender.

IV – Sobre “criatividade”, justamente, – e outros temas coligados – nesta sexta-feira, dia 6 de junho, das 19 às 22 horas, haverá na Sede Roosevelt da SP Escola de Teatro uma mesa de reflexão intitulada “Desconstruções: o traumático e o ato criativo“.

Aberta ao público e promovida pelo setor de Extensão Cultural da Escola, como parte do curso “A desconstrução do ator e a construção do personagem” (iniciado em 8 de maio e em que se desenvolvem estas pesquisas), mediada por Sergio Zlotnic, com os seguintes convidados: André Ramalho Castelani, Luciana Pires e Noemi Jaffe.

A não perder!

Observação: A frase título desta coluna é de Romain Rolland.

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]