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Colete Ortopédico

Publicado em: 15/02/2022 |

Chá e Cadernos 100.77

Mauri Paroni

 

Percebi que estava há quatro horas escrevendo e traduzindo na madrugada. Não o teria percebido sem que chegasse uma hospede que trabalha, até tarde, em set cinematográfico. Percebo que sou assim desde sempre. Esqueço-me de parar. Quando fumante, mais pelo vicio da nicotina, fumava por isso: para parar, para conceder-me uma pausa; não parava ensaios, nem paro aulas; on line, piorei: um maluco. Ensaiava por horas a fio. Não conhecia cansaço. Esse cansaço, para quem o tolerasse, ajudava a criação. Mas havia quem seguia a maluquice, e a parada ia além do drama. Virava real, e olha que não seguíamos a técnica do Eugenio Barba, do Odin Teatret dinamarquês – pelo menos não conscientemente.

Na estreia da segunda versão de O Asno de Ouro, uma atriz literalmente quebrou a espinha, mas  estava já com o colete ortopédico (!). No hospital, os médicos do plantão estavam perplexos. Uma pessoa com a  espinha quebrada, acompanhada de atores sãos, vestindo coletes sanitários  ortopédicos.

– Que absurdo é esse, a estas horas? A moça só não vai ficar tetraplégica por causa desse colete médico posto antes da lesão. Perda zero de líquido amniótico espinhal. Quem é o responsável por essa loucura?

– Aquele homem ali. Aquele diretor. Foi a roupa que ele escolheu como figurino. É um cara estranho, ele detesta essa palavra, exige que se diga roupa de personagem. Também não gosta nem da palavra personagem. Ele exige que se defina tudo como “feixes de significados cênicos” .

Digressão.

Descobri que sou um estranho.

Isso me leva a perguntar “qual ficção alimentava meus espetáculos?” Naqueles dias, auxiliava uma terapeuta psicóloga que tratava vários casos. Não cabe a mim discutir sobre a sua  seriedade, mas era tida como uma terapeuta competente. Havia várias pacientes, entre as quais uma famosíssima professora de química vítima de manipulações domésticas de um marido ciumento, a qual acabou obcecada pela fantasia de prostituir-se nas ruas periféricas da cidade, uma pretora (juíza corregedora) que sofria pela sua baixíssima estatura, e um empresário de sucesso portador de grave disfunção erétil.  Minha atribuição, dada pela terapeuta, era teatralizar em diálogos as suas aflições.  Foi uma intensíssima experiência. Levou-me a praticar a direção e o dramaturgismo concomitantes.

Reencontrei a desembargadora na quotidianidade ao, coincidentemente, ser por indicado para fazer a tradução juramentada – na Itália se jura uma a uma, diretamente em juízo – da instrução de um processo de adoção internacional de brasileira. Vidas entrecruzadas com terapia, realidade e ficção. Para aumentar a ironia, o casal de adotantes pediu para intermediar as conversas telefônicas com um instituto católico de mães solteiras.  O  processo legal no brasil corria sob a jurisdição de um juiz de menores chamado Beethoven (o que me chamou a atenção. Depois virou polemico: https://jundiagora.com.br/beethoven-forma/)

Acontecimentos ambíguos: parece um destino. Acabo sempre testemunha desse tipo de situação: um universo pequeno burguês que une Itália e Brasil, desde que a imigração saiu das fazendas junto dos escravizados, destinados à escravização pela racializaçao do fenômeno. Essa família, com a adotada, pode ter antecipado – esperaria que não – um microprojeto ideal de internet ou de… Bannon. Lega Nord. Trump. Johnson. Erdogan. Putin. Ping. Nouvelle bourgeoisie chinoise.

Fim da digressão.

Voltemos ao Asno de Ouro: entusiasmado pela experiência tida como “auxiliar” daquela estranha terapia,  cometi um grande erro na condução original do meu procedimento criativo – que é harmonizar as relações humanas, do elenco ao público.

Para continuar a temporada do espetáculo – que continua a evoluir depois da estreia -, preferi substituir a atriz acidentada por uma atriz não profissional, próxima a mim, e que dizia seu e  texto em francês. A fluência em outra língua além da dominante italiana, e nossa pessoal foram determinantes na  escolha; evitei a atriz profissional por convicção; dei de ombros à opinião  contrária do elenco, que considerei moralizante; desarmonizei, erradamente, as relações humanas internas da companhia. Além de tudo isso, a direção do teatro também tinha lutas intestinas. Ignorei a situação real, que não protegia o grupo artístico. Isso ocorre  muito mais do que parece, artistas gastam  muito tempo em  intrigas; não se escreve muito sobre. A manipulação dessa futilidade de nosso meio foi, diria, a grande irresponsabilidade política conduzida pelo Centro de Pesquisa para o Teatro de Milão [CRT] e suas rixas entre direitistas democrata cristãos, socialistas e comunistas. Usaram o acidente para fomentar a precariedade que minou as  bases do grupo. A arte não sobreviveu. Artistas se atiram ao risco; aos produtores toca protegê-los da fluência sutil dos seus erros e grandes consequências.

Asno de Ouro, Castello Sforzesco, Testro dell’Arte, Milão, 1997/98

Salvou-se a estreia. Salvou-se espinha dorsal da atriz. Sumiram os vídeos daquela segunda versão. A companhia implodiu. A vida artística acabou me ensinando que concentrar muito poder na arte é perigosíssimo: acaba com a vida que a alimenta. Uma terceira versão resgatou a força contra a neo-escravização. Exatamente o que havia imaginado desde a primeira intuição. Qualquer espetáculo é um mundo em si, dotado de forças próprias surpreendentes, no bem e no mal. Enfim, faz parte desta vida presente.