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Claves e conotações tchekhovianas – ou vulgo naturalismo

Publicado em: 13/08/2025 |

[Memória escrita da essência de podcasts realizados para  para a SP Escola de Teatro quando ainda não eram mídia  internáutica costumeira]

Voz de Sylvia Soares

– Palavra em cena. História dramática e a nossa vida cotidiana. Apresentação de Maurício Paroni de Castro. Especial para SP Escola de Teatro, Centro de Formação das Artes do Palco.

Voz de Paroni

– Estas são conotações tchekhovianas. No último podcast, falamos da clave e do ponto de vista pelo qual ouvimos os sons de um espetáculo ou performance. Depende do nível de profundidade do ato, do nível pessoal e para que nível do público se dá a comunicação. Ingenuamente, tendemos a pensar que exista somente a compreensão intelectual do que é dito ou da forma do espetáculo ou performance. Caímos em clichês ou estilos, no melhor dos casos, na compreensão superficial. Mas como o inconsciente é muito mais poderoso que o eu – idem a compreensão inconsciente – se estivermos num ato social num teatro, estaremos atentos ao superego e às regras de comportamento, esquecendo que compreendemos de modo geral o que vivemos. Condicionados por com quem vamos àquele evento. Prestamos atenção à companhia, misturamos essa companhia com o elenco e assim sucessivamente. Uma bola de neve de significados e existências que irá nos tocar dependendo da profundidade da comunicação entre as pessoas presentes no ambiente, muito mais do que presentes naquela cenografia ou presentes naquele palco. Tendemos a imaginar o que vemos e vemos somente um palco esteticamente organizado pelo diretor, se formos espectadores atentos e formados. A sala teatral sempre foi historicamente mais vista que o palco. Basta pensar no que acontecia quando a plateia e o palco eram iluminados igualmente pelas velas ou os nobres dos camarotes comiam para depois jogar pedaços de iguarias às plateias, num teatro à italiana da época barroca ou rococó. Para não dizer o que acontecia num teatro elisabetano. A cada fala política se olhava para a rainha ou para o seu representante e censor, presentes no camarote central. Havia este tipo de concentração por parte do público. Tudo era mais parecido com um camarote de escola de samba, onde se prestava atenção no público e nos camarotes, do que num rigoroso e sisudo silêncio de uma representação de hoje, por exemplo. Este é um dos motivos pelos quais ir ao teatro hoje é tão aborrecido e tão cansativo, para além dos perigos que significa ir a um teatro em cidades perigosas como as nossas, mesmo que as de outrora também o fossem. Com o fato de hoje os textos terem bem menos a dizer e os atores serem menos preparados artesanalmente. As convenções terem sido extrapoladas pela concorrência com meios reproduzíveis, que destroem a aura da obra-de-arte única e não reproduzível. Numa conversa recente sobre teatro do futuro, um amigo não profissional do teatro respondeu com esta sintética definição. Teatro não é mídia que se pode deletar, dar play, se dar um stop. Não é mídia por como estamos a operar. A conversa gelou. Estamos, então, diante do fim? Não, certamente vivemos uma espécie de coma teatral não necessariamente terminal.  Estamos no fim de um século e meio de artificialidades sustentadas por gente que via o teatro enquanto o modo de impor uma ideia a ser seguida, uma visão de unicidade pseudo-educativa,  uma ilusão de transformação radical do tempo histórico, que não depende do teatro. O teatro é que depende dele. Apesar disso, o teatro é o único momento das nossas vidas em que temos a certeza de que o que vemos representado acontece de verdade. Acontece uma representação, mesmo que seja de uma mentira. Mesmo no máximo do realismo alcançado pelo teatro russo do século XIX ou começo do XX.

Vamos fazer um passeio nos sons daquele teatro? Para acostumarmos os nossos ouvidos ao russo – segue, do dramaturgo e romancista Ivan Turgenev, a lista de personagens e descrições de Um Mês no Campo, lida por Francisco de Araújo, excelente tradutor estudioso do russo.

Pedi para ele que traduzisse o significado também do que leu.  Romancista do quilate de um Tolstoi, percebemos que a lista é de pessoas que somente depois viram personagens. Assim como a descrição é do ambiente do teatro antes de ser o ambiente da peça. Isso está literal ali. Quanto ao teatro e seu ambiente, estamos longe aqui daquelas representações maravilhosas e caras de festivais em que ficamos desesperados para prestar atenção nas legendas da tradução e perdemos o clima da peça e do ambiente em que estamos,  o próprio teatro. Ivan Sergeyevich Turgenev, Um Mês no Campo, comédia em cinco atos.

Voz de Francisco de Araújo

Personagens:

Arkady Sergeyevich Slayev, um rico proprietário de  36  anos;

Natalya Petrovna, sua esposa, 2 9   anos

Kolya, filho deles,  10 anos.

Veratka, preceptora, 17   anos.

Anna Semyonovna Slayeva, mãe de Slayev, 58  anos.

Lizaveta Bagdanovna, dama de companhia, 37  anos.

Shaaf, o alemão governante, 45  anos.

Mikhaila Aleksandrovich Rakitin, amigo da casa, 30  anos.

Alexei Nikolaevich Bilyaev, estudante, professor de Kolya, 21  anos.

Afanasy Ivanovich Balchintsov, vizinho,  48 anos.

Ignat Illich Spingelsky, médico, 40  anos.

Matvei, Servo, 40   anos.

Katia, serviçal, 20  anos.

Os atos acontecem na propriedade de Slayev no começo dos anos  .

– Porta direta, sala.   À esquerda, duas jantas e jantar de batata. Ao redor, sofas. Pela jantar de batata, Ana Semyonovna.  Elisabeta Bogdanovna e Shaaf jogam. Jantar de Natalia Petrovna e Rakitin.

O teatro apresenta um salão.  À direita, uma mesinha e uma porta de escritório. À frente, a porta do salão. À esquerda, duas janelas e uma mesa redonda. Atrás da mesinha, está Ana Semyonovna. Elisaveta Bogdanovna e Shaaf jogam preferência. Junto à mesa redonda, estão sentadas Natalia Petrovna e Rakitin. Natalia Petrovna está tricotando. Rakitin tem um livro nas mãos. O relógio de paredes marca três horas. Vamos a um quase contemporâneo momento mais realista daquele teatro.

Voz de Paroni

– Vamos a Tchekhov – A gaivota. – Em russo, Tchayka. Concebida como uma comédia, mas sempre feita como drama. Tchekhov disse que era uma comédia – com três papéis para mulher. Seis para homens. Quatro atos. Uma paisagem de vista para um lago. Muitas conversas sobre literatura. Um pouco de ação e um toque de amor.

Ouçam o que respondeu a atriz Cassia Marconi  a uma pergunta específica sobre ambiente e personagem.

-Voz de Paroni

– O que a tua vida que você passou hoje  tem a ver com a personagem da Nina?

Voz de Cassia Marconi

-A Nina é uma personagem de A Gaivota.  Como eu falei, ela é uma atriz jovem. Pretende trabalhar no teatro. Pretende ter fama. Ela é um duplo da Arkadina, que é uma atriz mais velha, e que já tem mais estabilidade.Já ganhou dinheiro, etc.  Mais conservadora e tudo.  Eu acho que tem a ver porque a Nina… Junto com o Trepliov, eles representam essa geração nova de artistas.

Essa geração que quer reestruturar, ressignificar a arte. Quer viver disso. É muito visceral. Entrega-se muito. Ela acaba não se dando muito bem na peça.  Assim como todas as peças do Tchekov. Os heróis, entre aspas, não se dão muito bem. Como na vida. Eu acho que tem a ver. Porque ela fica sofrendo. Ela fica se questionando… Será que eu vou ser uma atriz? Longe desse lirismo que pode parecer… Que é uma personagem super lírica. Super ensimesmada. Eu acho que ela questiona não só a condição de ser atriz, mas a condição de ser um ser humano, questão, como fala, precária. Essa questão de que nada é garantido. Se ela conseguisse ser atriz, que nem a Arkadina. Se ela conseguisse ter fama. Ela também teria as crises dela. Eu não sei. Eu me sinto muito Nina. Dramática. A identificação das pessoas, muito com as situações, principalmente com a profundidade da narração. Da problemática interna das pessoas. Seria um teatro psicológico.Mas não é.  Acho que é um teatro que… acho que o Tchekhov é precursor do Ionesco, do teatro do absurdo, em geral.

Voz de Paroni

– Olha que visão!

Voz de Cassia

-Mas já tem alguns caras que li…  onde?

Voz de Paroni

– Onde você leu?

Voz de Cassia

– Onde li?

Voz de Paroni

-Não, não. Em tua visão, quero saber.

Voz de  Cássia Marconi

-Então, é assim… Porque os personagens… Todos eles fazem solilóquios. Eles estão tentando se comunicar, mas ninguém se ouve, tipo a cantora careca do Ionesco. Alguém diz uma coisa, o outro diz outra. É uma tentativa de comunicação que é falha. Psicologicamente, as pessoas não conseguem se dizer nada. É a falência da linguagem enquanto narração de si mesmo. Para o outro. Até tem uma hora que a Nina se afasta do Trepliov. Eles se gostam. Ela acaba ficando com o Trigorin, que é o escritor mais velho. Foge com ele. Volta para ver o Trepliov. E quando eles se reencontram, em vez de ter um reencontro super acalorado, entra  dm seu escritório. No meio da conversa, ela começa a falar… Ai, que quadro interessante na parede… Ah, mas quanto tempo que eu não te vejo… Sabe assim, é muito um discurso atravessado por banalidades. Eles tentam se comunicar. Mas não conseguem porque eles estão muito dentro deles mesmos. Esse é o inferno deles. É que nem o Sartre.

Voz de Paroni

-Vamos ouvir agora, em língua original, o trecho vivido por Nina em seu diálogo com o cortejado Trigorin naquele palco de sua falência existencial e artística – Uma cena realista, apesar do teatro dentro de teatro. O que pode ser verdade ou ficção u o que se diz em língua russa a seguir são uma questão secundária para os propósitos deste podcast.  A questão primária será em qual nível há  origens os sons desta representação. Sugiro que fechem os olhos e mergulhem nesta floresta de paixão e precisão que somente atores russos conhecem e exercitam Aproveitem a escuta dramatizada de suas falas teatrais como um concerto de empatias:

Vozes em russo do texto original de Tchekhov. Versão indicativa em Português

[“Como se sente a fama? Como se sente a fama? Como?  Não deve ser assim. Eu nunca pensei nisso. Hâ algo entre os dois. Ou você exagera a minha fama. Ou ela não se sente de forma alguma. E se você lê nos jornais? Quando falam, é agradável. Quando não falam. Depois de um ou dois dias, você não a sente de forma alguma. Que mundo maravilhoso.  Eu adoro vocês, se vocês soubessem. O dinheiro dos homens é diferente.           Sim. Um ou dois carregam suas coisas boas. Sua existência é inconsciente.  Todos são parecidos. Todos são infelizes, mas outros… Como, você.  Você é um dos muitos.  Sua vida é interessante, tem um significado completo. Você é feliz.  Eu? Como dizer… Você fala de felicidade. De fama. De felicidade.  De uma vida linda e interessante. Mas, acredite-me, para mim, essas palavras são boas.  Elas são igual a marmelada, que eu nunca comi. Você é muito jovem. E muito bom. Sua vida é maravilhosa. E o que não é muito bom? Com licença, eu tenho que ir.” ]

Voz de Paroni

Se o autor diz que é uma comédia, como ficou tão dramático? Parece, como diz Humberto Eco, que se tenha perdido uma parte da comicidade. Essa comicidade, acredito que esteja em outros lugares. – Para quem se aborrecer com estas falas carregadas de subtexto em relação ao contexto, uma vez que não compreendemos semanticamente o russo, coloco um delírio japonês de bêbados e chorões da cultura enka – Esse espírito tem ainda muito na Rússia. Beber e se lamentar do destino individual inelutável.

Voz do ator e diretor Cassio Diniz  [sobre fundo canção enka]:

– Coloco minha vida na correnteza do tempo. Se eu não tivesse te encontrado, o que será que eu estaria fazendo hoje? Teria uma vida monótona? E teria uma vida comum?   Coloco minha vida na correnteza do tempo.Quero me tingir com a sua cor. Minha única vida. Nem me importo em deixá-la de lado. Por isso te peço, fique perto de mim. Agora é só você que amo. Se você passar a me odiar, o dia de amanhã não mais existirá. Não quero nenhuma promessa. Mas não posso viver somente de lembranças. Coloco minha vida na correnteza do tempo. E te abraço. E só pelo fato de ter ficado atraente,  já não me importo em continuar vivendo. Por isso te peço, fique perto de mim. Agora não consigo ver ninguém, a não ser você. A quem nos seguiu até agora? Até aqui, reservei uma pequena surpresa.

Voz de Paroni

Há um traço disso no Brasil. Acredito que esse lamento do Tim Maia seja mais tchekhoviano que a maioria das montagens e interpretações propinadas como verdadeiro Tchekhov, por bem-comportadas ou vanguardistas que sejam. Num longínquo Tim Maia Romântico introduz-se o seu Me dê Motivo: “Engraçado. (…) A gente fica pensando  que está sendo amado, que está amando e que encontrou tudo que a vida podia oferecer. E em cima disso… a gente constrói os nossos sonhos, os nossos castelos e cria um mundo de encanto   onde tudo é belo até que a mulher que a gente ama vacila   e põe tudo a perder,  tudo a perder. Me dê, me dê motivo,  vai ser agora – estou indo embora , o que fazer?   Estou indo embora – não faz sentido  ficar contigo, melhor assim – é nessa hora que o homem chora – a dor é forte  demais pra mim .” Quando se conversa sobre Tchekhov temos sempre bons motivos para discutir ou brigar.    Cito ainda: “Cada um pro seu lado,  a vida é estranha,   eu vou procurar e sei que vou encontrar alguém melhor que você espero que seja feliz  no seu novo caminho  ficar contigo não faz sentido. Melhor assim. Me dê motivo, me dê motivo.”

Voz de Sylvia Soares

– Palavra em cena. História dramática e a nossa vida cotidiana. Apresentação de Maurício Paroni de Castro.

Especial para SP Escola de Teatro, Centro de Formação das Artes do Palco.