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A cara e o rosto

Publicado em: 01/03/2015 |

1 – Ao contrário da pintura, que põe camadas de tinta sobre uma tela branca, a escultura tira da pedra bruta os excessos, para que a figura que repousa sob a massa amorfa apareça e ganhe vida.

 

O escultor é aquele que, escutando o mármore, retira as camadas que recobrem o rosto ali soterrado! E liberta a estátua adormecida do interior da pedra. Assim, ensina Freud, o artista escultor procede: não pela via de porre, mas pela via de levare.

 

A psicanálise se daria à moda da escultura, e não da pintura. Por esvaziamento e subtração, não por adição. O tratamento retira os excessos que saem da boca do paciente, pelo discurso, camadas e camadas de ilusão, até libertar aquilo que tem que ser dito: a essência esquecida no porão!

 

Será assim também no teatro? O trabalho no palco supõe igualmente um ator de rosto vazio? No limite, vale dizer, o teatro se realizaria sem atores, somente com personagens saídos de um sonho. Vultos fugidios. Uma utopia.

 

2 – O ator tem de sair da frente e esvaziar a cara para dar rosto ao personagem. Uma cara carregada sublinha e destaca o que deveria permanecer oculto e desabitado. A cara do ator jamais pode ser impressionista. Não há lugar no palco, aliás, para cara nenhuma.

 

O vazio da cara é o que dá rosto à ficção. Cara de nada, reticências, olhar pousado no infinito são as recomendações para que se chegue a um rosto. O rosto é uma cara de nada. O ator oferece um oco à plateia – que, então, completa como quiser o espaço oferecido.

 

A cara é um exagero de ocidentalização – expressão que deve ser apagada – que revela excessiva força colocada no rosto. O teatro, bem ao contrário, se dá por cessação de toda força. A cara vira fundo pra que o rosto seja figura. E tornar fundo qualquer cacoete só ocorre à custa de uma não força. O ator que se apoia na cara necessita de um árduo e longo trabalho de des-sensibilização. Descaracterização! Desconstrução! Desabitação!

 

Economia é o lema. Pequenos gestos. Menos é mais. Traço e não monumento. O ator que assim se conduz, que esvazia a cara no palco, não sabe – e não precisa saber absolutamente nada – desse processo de nadificação. Ou então, sim, ele sabe, mas com o corpo, não com a cabeça. Com as tripas, não com o cérebro!

 

As vozes da verdade sussurram no rosto, e somente nele – que dá a ver algo de que o ator não tem a menor consciência. O rosto torna, assim, a performance uma improvisação (mesmo quando se repete um mesmo texto, noite após noite…). E o espetáculo, nessa prescrição, está sempre em vias de não ser mais assim: é, para sempre, pesquisa e ensaio aberto.

 

3 – As mãos e os gestos não fazem parte do rosto em seu sentido estrito, mas o flexionam de modo indireto. São difíceis de driblar, manifestando-se quase à revelia do artista, dificultando que a pessoa do ator desapareça, como deve ser. Todo palco multiplica os braços – se você tem dois, passa a ter dezesseis. Contê-los é o avesso de um malabarismo que faz parte do ofício. Pela via de levare, toda micagem tem de ser retirada.

 

Ao lado da expressão total, apreendida como uma gestalt indivisível pelo espectador (que inclui também elementos coadjuvantes não tão óbvios), a boca e o olhar são protagonistas na composição do rosto. Por serem selvagens, se opõem a toda tentativa de controle. A familiaridade passa longe daqui. A cena existe, ao contrário, para causar estranheza. Unheimlich!

 

Dentes que mordem os lábios, revelando hesitação do ator (e não do personagem), por exemplo, é imagem que tem de ser apagada. Tiques, cacoetes, apoios, bengalas – todos os clichês são eliminados.

 

Pois o gesto que o ator evoca, à sua revelia, não pode contradizer a cena. Ao contrário, ele (o gesto) deve conduzi-la. Como se o artista apalpasse uma palavra soterrada, por debaixo da pedra bruta – e saísse da frente, pra que ela se eleve por si.

 

O olhar! Esse que, como se sabe, não mente jamais. Ele dá a ver uma matéria não metabolizada dos confins da alma do ator. O enigma a ser desafiado. O olhar é o sentido mais poderoso do artista. O mais desobediente. Não adestrável.

 

4 – Calar o hábito, a mão e o gesto, a boca e o olhar, e retirar todo aspecto domesticado da cena, parece ser requisito para acessar outro registro, que o ritual do teatro evoca e obriga – para que outra voz se levante. Ao limpar a cara de ruídos, com vistas a chegar a um rosto, o ator aposta, sem saber se vai (se) sustentar, nem o que virá dali.

 

Geograficamente, essa é a porção arriscada e potente do ofício teatral, pois ao deletar seus pilares mais caros, o ator se põe, desamparadamente, no mais imprevisível dos lugares. Mesmo que em silêncio e mudo, o seu desafio é o de encher a cena com seu rosto vazio. Seus ecos plantam no palco buracos prontos a explodir, minas de verdade!

 

Nesse processo, o ator é, finalmente, agido em cena, surfando numa voz passiva – tanto quanto aquele sujeito que, em análise, é falado, pelo próprio discurso. É aí que o teatro começa. Melhor: é aí que ele é teatro…

 

5 – A beleza dos atores que morrem no palco está em levar à risca os procedimentos que os deuses sugerem. Incrível (e coerente) seria assistir ao personagem sobreviver e seguir atuando, depois do ator morto.

 

E, de fato, ocorre sempre uma morte em cena. Toda vez que um ator consente em ser veículo de uma voz estrangeira. Ele se oferece em sacrifício, como um bode assassinado, em consonância com o ritual da gênese das artes do palco. Após cada espetáculo, é trabalho recuperar o ego e o bode, e ressuscitar as contingências. Como quando despertamos de um sono fundo. Da capo, non ducor duco! Fora do palco, o ator recupera a ilusão da voz ativa…

 

6 – Observação I – nem sempre é fácil decidir o que conter e o que não conter. Nem sempre é fácil acertar. Calar o que deve ser calado e deixar agir o que tem de ser libertado. Mas parece certo que a pressão de acertar é contraproducente.

 

7 – Observação II – a) pode haver situações em que seja necessária uma provisória via de porre para reinstaurar adiante a via de levare. b) a “essência esquecida no porão” (do início da coluna) é mais uma licença poética do que um abraço filosófico! A frase tem um propósito meramente estético…

 

8 – Observação III – O pensamento aqui exposto avançaria se incluíssemos dois itens que também concorrem para a formação de um rosto, a saber: a voz do ator e a dimensão temporal. Isso não será desenvolvido aqui, mas vejamos brevemente um esboço de articulação para esses dois temas que teriam de comparecer se desejássemos construir uma grande equação do trabalho do ator:

 

a) Toda pessoa que aprende a falar muito bem outra língua, além da materna, se surpreende com o fato de que sua voz se modifica completamente ao circular pelas sintaxes e pelas sonoridades do outro idioma. Como se, ao falar outra língua, fossemos outra pessoa! E leva um tempo até que possamos nos reconhecer nessa nova identidade que se cria. Isso talvez queira dizer que é um bom sinal quando o ator estranha o seu próprio produto.

 

b) A temporalidade não é domesticável, mas o timing do ator, sim! Quando um rosto se constela no palco, há uma alteração na percepção do tempo. Em geral, é um atraso o que ocorre, quando o teatro se dá. Nessa “não-pressa”, o ator encontra brechas para acontecer. De certo modo, ele necessariamente desrespeita o texto (às vezes até mesmo as marcações) – pois ele é obrigado a recriá-lo a cada apresentação. Na infidelidade, o ator é territorial: toma posse do espetáculo, como se o tivesse escrito ele mesmo (nos dias que correm, os processos coletivos colocam todos os membros da trupe em condição de igualdade, e de fato os atores são também autores do trabalho, que tem, então, muitas vezes, autoria grupal).

 

9 – Observação IV – Nas últimas décadas, num certo sentido, o teatro foi ficando menos teatral: cada vez menos, em sua atuação, o ator precisa se travestir num personagem para que o teatro aconteça. Essa “naturalidade”, por assim dizer, poderia contradizer o raciocínio que foi desenvolvido aqui. Mas, uma pergunta: por que meios se dá esse fenômeno de se travestir num personagem? Pela via de levare ou pela via de porre?! Isso pode decidir a discussão…

 

10 – Observação IV – o título “A cara e o rosto” é de um livro de 1994, de Ana Maria Loffredo, psicanalista, livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Nas palavras da autora, o livro trata do diálogo entre “pensamento disciplinado e imaginação criadora”.

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]