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Bibliotecas versus Werwolfs

Publicado em: 25/07/2022 |


Chá e Cadernos 100.98
Mauri Paroni

[…] Sempre que tivermos a oportunidade de terminar suas vidas, o faremos com prazer […] para nós mesmos. [….] O ódio é nossa oração. A vingança é nosso grito de batalha”. […]… Essa linguagem espelha precisamente a forma desesperada do gabinete degenerado. Com olhares crispados pela representação dos seus mitos, faz-se inspirar por seus próprios rancores e frustrações reprimidas pelo senso comum. Traduzem-nas à massa exasperada pela desigualdade cultivada em cada centímetro do dia a dia. É loucura e violência que alimenta a paranoia de quem está na linha de tiro de guerrilha – que passa pela posse de armas dentro das casas, das famílias, das associações. Dos clubes de tiro. Dos sufocamentos de universidades, escolas, sexualidades, movimentos e consciências. Passa por fechamentos de bibliotecas. Como sempre passa por fogueiras santas, por mitificações de passados jamais existidos.

Apesar do horror dos noticiários, ou justamente por eles, um olhar no passado muito pode realizar se exercitarmos a experiencia especulativa, formal e artística de combater aquela loucura criando uma estética alegórica e específica em nosso campo de ação; por exemplo, qual teatro serve de para advertência sobre o pior? Qual biblioteca? Qual performance? Enfim, qual estética produzir, quis dispositivos, anticonvencionais e não, podemos escolher para isso. O que, e como? Sendo diretos, combatendo a linguagem dos assassinatos por fome, dos extermínios por desmonte de assistência sanitária, das perseguições étnicas e sociais. Sem medo: não falo de listas. Falo de necessidade.
Passei a adolescência e juventude lendo, ouvindo e discutindo sobre essa realidade que parece não ter fim na sua preocupante progressão. Trata-se da violência cíclica dos chamados períodos de “paz” – serve para jogos de poder acima de nosso poder; por não darmos àquela realidade uma gramática, uma dialética, material ou ideal que seja, está fadada a continuar.

Buscar linguagens forçadamente míticas é a especialidade da falsa palhaçaria que sempre grassa em fins de autocracias. Há uma lista assustadoramente banal na história; não estamos num terreno abstrato. Falamos de séculos XX e XXI, lembrando os nomes de autocratas ou de ditadores sanguinários de todos os matizes ideológicos. A lista tende ao infinito por operar na virtualidade eletrônica da qual o mundo depende nestes tempos: [Augusto Pinochet (Chile), Hissène Habré (Chade), Trump (EUA da dicotomia burguesa), Kim Il-sung (Coreia do Norte), Pol Pot, (Camboja) e seu padrinho Mao que, através do khmer e Revolução Cultural acabaram por reconduzir e refundar uma espécie de Estado agrícola, Salazar (Portugal), Franco (Espanha), Anastácio Somoza/Daniel Ortega (Nicarágua), Josip Stalin (URSS), Hugo Panzer (Bolívia), Alfredo Stroessner (Paraguai), Ghedafi (Líbia), Emilio Médici, Galtieri/Viola/Videla (Argentina), Idi Amin Dada (Uganda), Bin Laden, Ceausescu, Hosni Mubarak (Egito), Benito Mussolini, Pol Pot , Talat Pasha e Jovens Rurcos (genocídio do povo armênio), Leopoldo II (Belgica e genocídio no Congo), Hitler/Goebbels (remember “AlvOlavo”), a alegoria “kamikaze” – vento divino – da deusa Amaterassu que “fundou” o Japão sobre os povos originários – hainu = coisa.; Hiroito (uma divindade terrena do Xintoísmo de Estado promovido pelo império japonês de anteguerra, que ainda não pediu desculpas oficiais dos horrores cometidos na Manchúria).]

A nomenclatura se perde no espaço, por ser imensa. Mas a mais emblemática, citada na abertura do artigo porque de compreensão mais evidente, é a do gabinete do ódio mais parabólico de todos os tempos: aquele frequentado por Goebbels, Himmler, Martin Borman e demais figuras carimbadas.

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A imbecilidade nacionalista era uma mística que jamais será provada: certa etnia “teuto-ariana” própria e una. A invenção de um identitário lugar de culto de alguns povos germânicos do passado servia ao nacionalismo alemão nazista. Por exemplo: Externsteine. Esta é uma formação rochosa em que se destacam treze grandes pilares. Ali, escavações arqueológicas descobriram ferramentas do Paleolítico Superior. Forçou-se identificar em Externsteine um lendário “ídolo Irminsul”, que ligava o céu à terra e supostamente foi destruído por Carlos Magno no ano 772 para pôr fim aos antigos cultos pagãos. Entre os séculos IX e XV, Externsteine foi um lugar de culto cristão. Também foram encontrados relevos provavelmente esculpidos por monges no século XI. Há também documentos indicando ter sido utilizado como eremitério entre os séculos XIII e XVII.

Extersteine
Foto: Domínio público (Ronny Ueckermann)
Soldados Wermacht em Extersteine

Lugares-prova de um passado mítico infalivelmente vitorioso sempre foram alegorias basilares para qualquer fanatismo político ou religioso. Grupos nacionalistas afirmavam que Externsteine teria sido um lugar do tipo. Segundo eles, a área era habitada por uma avançada cultura germânica qual “prova irrefutável” de seu futuro glorioso. Alimentada por alegorias como essas, a elite nazista da guerra já perdida decidiu-se pela guerrilha suicida. Com os russos às portas de Berlim, Hitler encontrou as crianças das unidades especiais conhecidas como Werwolf (lobisomens). Esse era o nome de um romance de Hermann Löns de 1910, que narra vinganças religiosas de camponeses infantis na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) – os quais reuniriam centenas de vizinhos para capturar e executar impiedosamente os invasores. Os hierarquias nazistas daquele gabinete de ódio que funcionava do lado de Hitler haviam fundado, anos antes, a divisão infanto juvenil Werwolf – gente cuja identidade real jamais existiu.

A idéia de sua criação foi de Martin Borman, ajudante de ordens de Adolf Hitler. Em março de 1945, diante da derrota iminente, o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels proferiu um discurso conhecido como “Discurso do Lobisomem”. Há um filme em que, fora de seu bunker, Hitler cumprimenta um grupo de Werwolfs. Após a saudação, Hitler voltou ao seu covil. As crianças foram forçadas a voltar às ruas para enfrentar tanques russos. Poucas conseguiram desertar. As outras foram massacradas.

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Há clubes de tiro para gente comum e crianças. Bibliotecas, jamais. Não há coincidência nisso. Há palavras transformadas em balas. Alegorias em si, encerro com algumas delas:

– Do general argentino Saint-Jean, após o golpe de estado dado na madrugada do dia 24 de março de 1976: “Primeiro, mataremos todos os subversivos. Em seguida, os seus colaboradores. Depois, os seus simpatizantes. Depois, aqueles que permanecerem indiferentes. Por último, mataremos os indecisos.”

– De telegramas criptografados do ministro do Interior dos Jovens Turcos, Talat Pasha: O Governo decidiu eliminar totalmente todos os armênios que vivem na Turquia (…). Sem dar atenção ao fato de serem mulheres, crianças ou doentes. Por mais trágicos que possam parecer estes métodos de extermínio, deve-se pôr fim às suas existências, sem escutar nossa consciência”.

Wikipedia Commons
Junta militar que derrubou governo foi formada pelos militares Jorge Rafael Videla, Emilio Massera e Orlando Agostí

Trecho do “Discurso do Werwolf [Lobisomem]”, de Goebbels “Todos os meios são permitidos para prejudicar o inimigo. Nossas cidades ocidentais destruídas pelo cruel terrorismo aéreo, as mulheres e crianças famintas ao longo do Reno nos ensinaram a odiar o inimigo. O sangue e as lágrimas de nossos homens assassinados, nossas mulheres violentadas e nossas crianças massacradas nos territórios ocupados do Leste exigem vingança. O Werwolf declara sua decisão firme e resoluta, indiferente a um possível fim, de vingar com a morte todo ultraje cometido pelo inimigo contra um membro de nosso povo. Todo bolchevique, todo inglês e todo norte-americano será o alvo de nosso movimento. Sempre que tivermos a oportunidade de terminar suas vidas, o faremos com prazer e sem medo para nós mesmos. Todo alemão, onde quer que esteja, disposto a colaborar com o inimigo, sofrerá nossa vingança. O ódio é nossa oração. A vingança é nosso grito de batalha”.

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Para não encerrar na maldade: aqui está um trecho d’O Sermão do Bom Ladrão, escrito em 1655 pelo Padre Antônio Vieira e proferido na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante D. João IV e sua corte, com os maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros.

“O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos. Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos. Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma, o resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas… Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.

Fontes:
historicang.it
https://operamundi.uol.com.br/hoje-na-historia/3368/hoje-na-historia-1976-golpe-militar-instaura-ditadura-na-argentina
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/22/internacional/1429718492_977293.html
https://brasil.elpais.com/internacional/2021-05-01/genocidio-armenio-uma-politica-de-estado-que-inspirou-os-nazistas-e-negado-por-motivos-politicos.html