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Beckett em casa Borghi – o não-teatro também É teatro

Publicado em: 13/08/2025 |

[Memória escrita da essência de podcasts realizados para  para a SP Escola de Teatro quando ainda não eram mídia  internáutica costumeira]

Mauri  Paroni

Voz de Sylvia Soares. Musica de Hændel.

-Palavra em cena.História dramática e a nossa vida cotidiana. Apresentação de Maurício Paroni de Castro. Especial para SP Escola de Teatro, Centro de Formação das Artes do Palco.

Sucessão de telefonemas  de convite.

Voz de Paroni

-Palavra em cena apresenta uma sucessão assustadora de telefonemas beckettianos e combinações amigáveis de ameaças à minha mobilidade.

Campainhas.

Reflexão sobre verossimilhança, teatralidade, espetáculo e performance.

Sons de ambiente de vozes em amplo salão.

Voz de Paroni

– Aqui na casa de Renato Borghi, para ver o “End of Game – “Fm de Jogo” de Samuel Beckett.  Peça que, na Itália, pediram-me para dirigir – o que não consegui por ilustrar perfeitamente muito os últimos  dias de meu pai.

A primeira coisa que me vem em mente é um velho ditado budista.: comporte-se como se  estivesse sozinho se você tivesse visitas, e com as visitas como se estivesse sozinho.  A sala começa a encher, e é muito legal saber que aquela casa onde eu sempre fiz leituras e discussões acaloradas está chia de gente aqui.  A sala do Renato já está quase lotada, e o espetáculo é “fim de jogo”, de Samuel  Beckett, Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas, Hamm e Clov,  direção da Isabel Teixeira. Participam Maria de Castro Borghi e Gabriel Borghi, Nagg e Nell.

É muito bom saber que isso acontece porque a mistura de teatro com vida é uma marca que acho fundamental no teatro, que é distintiva do teatro.  Na minha opinião, não existe diferença entre performance e espetáculo, na medida  que o espetáculo é uma performance, feito dentro de casa, é mais ainda performático.  De qualquer modo, não dá para gravar o que o público fala, mas a gente tem uma ideia  dos sons. Toca também uma espécie de uma bossa nova.  Tem de tudo aqui.  Gente saudosa e não. O porteiro cumprimenta, que o porteiro se sente importante. Tem um bombeiro. Um bombeiro no terraçozinho é ótimo. Você imagina ter uma casa com um bombeiro de prontidão no terraço. Eu me lembro que da Itália, quando eu fazia leituras dentro do meu apartamento, tinha uma mulher que reclamava, dizendo que tinha gente aqui no palácio, ou seja, tem gente  no prédio. Eu falei, será que tem o quê? E o próprio Tadeusz Kantor dizia sempre para a gente que, quando ele frequentava os realistas, tinha uma senhora que era concierge, zeladora, no prédio, dizia sempre “morram os artistas!”,  qu’ils créve les artistes [SIC]. E acabou virando o nome de um dos espetáculos do Kantor.  Foi o primeiro que eu vi dele.

Elcio acabou de passar por aqui ajeitando a cortina, mas ele foi fazer tudo menos ajeitar  a cortina. Vai verificando que tipo de gente tem, como público. Toca o segundo sinal.

Bem, como eu havia dito, um espetáculo que começa com “Acabou”, cria uma terra queimada, da qual o teatro convencional ainda não se recuperou. Talvez o teatro não convencional nem tenha tocado isso, porque tudo que veio a seguir  é pior ainda.

Os atores devem fazer algo de totalmente inútil para a representação, pois de nada adianta representar para uma sociedade que viveu o horror do holocausto e dos gulags.  Matar em nome de uma ideia nossa é tão destruidor quanto matar o outro por uma ideia que se  nos opõe.  Não foi mais possível o ato de acreditar depois dessas mortes e também depois de  Samuel Beckett. Não foi mais possível a suspensão da desconfiança, o cerne do teatro de qualquer tipo.  E é este o cerne desta obra genial do Beckett em particular.  Trazê-la para dentro da própria casa é uma atitude decorrente, mas que bem raros artistas  têm a coragem de assumi-la, porque não se trata de uma festinha com gente bêbada ou barulhenta  que incomoda os vizinhos.

Trata-se de fazê-los ouvir alto e bom som:  “Acabou”.

Vocês imaginaram que pode ser que um ator como o Borghi, com mais de sessenta anos de palco,  pela hora que vai se seguir aqui, faça gestos inúteis para a representação?  Ou que significa que os outros dois personagens sejam representados pelos retratos animados  dos pais que já faleceram?  Retratos que vão ficar igual a fotografias de tumba. Eu já havia visto esses retratos na parede desse apartamento. Pendurados por referência, por memória, por afeto. Pois bem, esses retratos acabam dublados pelo outro odiado, amado ator prisioneiro do teatro. O que significa, então, que um vizinho de verdade, que odeia, que se ouse fazer teatro  no prédio e arrasta móveis em um desesperado protesto?  Que força significa quando o Clov vistoria as janelas daquele vizinho com uma presumível  luneta e não acontece nada, absolutamente nada, do lado de fora da casa?  Depois ele narra essa desgraça e um cego que não é cego, talvez um ator, certamente  um homem terrivelmente cansado.  Estamos diante do horror da ficção, que não pode mais ser ficção.  Por isso, o Clov não consegue mais abandonar uma ficção vinda desde o princípio,  porque lá fora é pior ainda. Esse é um inferno que nem Sartre – nem ninguém – pode imaginar viver.  Esses atores aqui vão vivê-lo, vão dizer essas palavras na própria casa, com as próprias  vidas e, eventualmente, com técnicas teatrais.  Vai ter valido a pena ter vindo aqui e vivido junto com eles a realidade do que alguns estudiosos  têm chamado de pós-dramático.

Vai ter valido a pena, porque esse pós-dramático foi tornado impossível por Beckett,  antes mesmo de ser pós. Mas é raro que no teatro se faça isso.  Olha, eu não sei o que é e nem o que será hoje. Se será. Boa noite do planeta Beckett. Alguém perguntou por que tem o vento nos olhos. É, porque tem o ventilador que está direto aqui.  Pelo menos tem um ventilador aqui e não tem ar-condicionado.

E foi tudo.  O Terceiro sinal toca. [apago aqui a gravação para o podcast]

Voz de Sylvia Soares. Musica de Hændel.

-Palavra em cena.História dramática e a nossa vida cotidiana. Apresentação de Maurício Paroni de Castro. Especial para SP Escola de Teatro, Centro de Formação das Artes do Palco.