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Aviso a navegantes

Publicado em: 24/01/2022 |

Chá e Cadernos 100.74

Mauri Paroni

 

Quando se transgride, hei de lembrar alguns avisos a navegantes transgressores do passado. Tipo Bob Dylan: um verso de Absolutely Sweet Marie, [But to live outside the law, you must be honest], “mas para se viver fora da lei, precisa ser honesto”. Confundir as duas coisas leva à morte certa, onde quer que se navegue. [Ouça aqui e ganhe o maior solo de gaita harmônica jamais feito no rock:

https://www.youtube.com/watch?v=3SiPOZ958PA&t=10s   ]

 

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Se tomarmos o teatro como um ambiente de gente fora da ordem constituída dentro da transgressão – ou somente um pé em seu acesso, trago outras lembranças:

No mundo cristão eclesiástico durante e depois da idade média, quando ainda se morria para ir  fora dos domínios físicos da vida das igrejas, o suicídio não era transgressão; era maldição. A sepultura de suicidas era rigorosamente feita fora delas e dos campos santos. A regra era essa,  vinda da quotidianidade ritualística de um escorrer sagrado de horas e orações, organizadas pelos mosteiros e teólogos, Santo Agostinho (354-430 d.C.) à frente destes. Herança dos ecos da palavra dura de São Paulo de Tarso (5-67 d.C.) nas catacumbas, onde cadáveres aguardavam, em vão, uma iminente ressurreição em seus nichos.

 

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Para gente de teatro, maldiçoes  eternas valem desde sempre. Remember Moliére… Ou o epitáfio atribuído a Shakespeare em sua própria tumba na   Holy Trinity Church de Stratford-upon-Avon, onde nasceu e foi sepultado.

“Bom amigo, pelo amor de Jesus, abstenha-se de cavar a poeira aqui contida. Abençoado é o homem que respeita estas pedras e amaldiçoado é aquele que remove meus ossos.”

 

Isso, no mundo cristão. No mundo árabe, nem existia a ideia de autor de uma ficção. Eram estórias, e basta, como tão bem descreve Jorge Luis Borges (1899-1986) em “O Erro de Averróis”.

Borges no L’Hôtel, Paris, 1968

 

 

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O que vejo como mais transgressivo no teatro é o padrão com que os riôs da África Ocidental  usam a sabedoria teatral nos cantos ancestrais. Orais. No ocidente pós alfabetização do publico comum, concomitante ao fim da Commedia dell’Arte decretado pelo romantismo/naturalismo, a morte foi desacreditada nos palcos. Acabou removida do quotidiano contemporâneo. Paga-se o preço de teatro pseudoliterário viciante para elitistas de  todo gênero.

 

As catacumbas, as sacras representações, os palcos mambembes e precários teatros eram os locais santos, os sepulcros, a verdade física, onde se esperava a aparição falseada do Demo, a volta do Cristo ou de um qualquer salvador, a levar os justos e fiéis ao gozo da presença de Deus. O Paraiso não estava em Terra, mas no caminho sob a terra. Uma vez oficializada a cristandade num império latino por séculos decaído, o seu esquema teológico tomou as basílicas – lugar do rei, basileus, em grego. Fecharam um dos lados do edifício com um crucifixo. Sob as naves e os pavimentos, continuaram a sepultar os justos nas basílicas. Nenhum teatro fixo.

 

Atores não eram “justos”. Sabiam ler, tendo estudado para o sacerdócio – único jeito de alguém que não fosse guerreiro ou nobre ter acesso à escola de modo não somente verbal. Isso era diferente de qualquer outra cultura não hegemônica.

 

Teatrantes eram expulsos das aulas nos mosteiros. Do mundo, da vida e da morte. Amaldiçoados, automaticamente excomungados, viravam saltimbancos. Mas sabiam o latim, o que era o equivalente a saber, hoje, cálculo diferencial na obra de um edifício,  instrumento privilegiado e essencial na engenharia. Mestres de obras não sabem cálculo integral, ainda que construam casas nas comunidades. Sabem muito, mas não têm acesso a tal conhecimento abstrato e científico.

 

Artistas de teatro proviam acesso, a quem não soubesse ler, a precisos conhecimentos fora do controle total do Estado e da Igreja. Nem uma reforma radical como a luterana, que traduziu a Bíblia à língua vulgar e promovia alfabetizações, chegava a isso. Eram, pois, gente perigosa. Proviam saber abstrato e alegórico a mulheres, a pobres, a servos, à gentalha anônima fora da esfera de Deus. Fora do poder. Fora do mundo. Fora da “pureza”. Proviam acesso ao saber secular, à alegoria e ao símbolo. Portanto, mais que a fogueira, a teatrantes nada de sepultura em lugar sacro. Nada de presença no reino da morte enquanto antítese da vida que desenhasse e confirmasse a própria vida. Ser gente de teatro significou, por alguns séculos, estar fora até do Inferno.

 

Esse estigma ainda guia, inconscientemente, o caráter verbal da arte teatral. Mas desde a alfabetização geral do publico, o teatro perdeu uma sua artéria-tipo de conhecimento intuitivo, sagrado, quotidiano, que torna teatrantes simpáticos e reconhecíveis a um publico, criveis em suas mentiras, honestos em sua fé, cênica ou existencial. Isso é reconhecível até em péssimos artistas.

 

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Uma quase lenda de um dos mais famosos atores brasileiros: Diz-se que Sérgio Cardoso tinha muita dificuldade em leituras de mesa; para não passar vergonha, decorava as suas falas no primeiro dia, fingia lê-las; com isso, chegava a resultados extraordinários.

 

Não defendo o analfabetismo. Mas o paradoxo de uma transgressão da e na tradição, defendo sim. A cultura do teatro é outra cultura, é alteridade. É a única que pode inutilizar a loucura fundamentalista e seu fanatismo. Trazer uma desejável inanição ao horror raso bigbrotheriano. Não  se pode mais descrevê-la com precisão. Mas é o que o salva da morte cultural.

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