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Auto contemporâneo rezado por bilhetinhos nos confins dos palcos (Alegoria teatral)

Publicado em: 03/11/2021 |

Chá e Cadernos 100.66
Mauri Paroni

Auditório teatral de um manicômio judiciário. Um pequeno grupo teatral, ecumênico e leigo de oração composto de artistas trans, atrizes e um velho leproso de cabelos brancos está sentado no fundo da cena. Tomam um cafezinho. Sobre eles há’ uma placa com a pichação: DEGREDO PARA ARTISTAS DECADENTES

Uma primeira atriz suburbana entra no palco, acende uma vela, abre um bilhete:

Bilhete da finada Crânia…

Uma segunda atriz suburbana metida a francesa lê o bilhete:

Esquece-me por um dia que eu te abandono por uma semana.

A primeira atriz suburbana desconfia de trapaça por arte da segunda atriz, dobra o bilhete e abre um outro. Lê, com incredulidade:

Deste conforto tumbal percebo o marco deste momento: O inacreditável sempre acontece na obra de arte perde – a maior parte da sua aura perde-se no progresso tecnológico da vida comum; no palco, a luz elétrica mudou a ficção. A cenografia pintada morreu como ilusão para o fluxo da vida real.

Acende uma lâmpada e apaga a vela. Aponta uma lanterna para a perna da segunda atriz suburbana. Continua a ler:

A luz elétrica mata o teatro. Mata este bilhete. Mata esta revelação: ilumina o falso mito da celulite como padrão – discutível – de beleza da pele. Pele morta.

Pausa.

Ela faz tocar um concerto do Quinteto Armorial, “Entremeio para rabeca e percussão”. Fecha os olhos. Dança. Poe, em seguida, Nélson da rabeca. “Caranguejo Danado”.

Rabeca. Violão. Afeto. Arte.

Repete o entremeio e Nelson, enquanto volta a ler:

Um artesanato da pobreza honrada instintivamente desenvolvido em seus instrumentos. Os luthiers, os melhores, pretos, criaram sua imensa tradição no mundo. Ainda estão vivos.

Pausa.

Usam até computadores, mas – ainda – as melhores madeiras possíveis para os arcos são da floresta em extinção. Madeiras de corpos ressoantes.

Pausa.

Podem mais facilmente reproduzir melodias de alta qualidade instrumental. Tocam mais alto que os tambores que os acompanham ou solam.

Pausa.

Utilizam o “soul” de suas ancestralidades para isso.

Pausa.

Desapareceram os compositores, estamos condenados à baixa música, à baixa realidade, mas ainda temos os instrumentos.

Pausa.

Esperança.

Pausa.

Na fé cênica e na coragem de se superar as circunstâncias a que se está submisso, há o passo ide e volta afro-mediterrâneo.

Pausa. Outro bilhete.

“Mil veis tocá rabeca que cortá no canaviá.”

E o segredo das árvores.

Pausa.

Brenda levanta-se e traz, na bandeja, uma caveira e um candelabro a acender. Veste uma bauta (a mascara da Morte, na Commedia dell’Arte), roupa preta larga e luvas brancas. Lê outro bilhete:

A morte morreu
O teatro morreu
Deus morreu

A primeira atriz do subúrbio (Sóbria, estatutária qual realismo socialista soviético, voz metalizada, mas doce):

Nada de Europa.

Pausa.

Nada de fazer arte europeia na risca.

Pausa.

Arte vem de outro lugar. Arte é outra coisa. Arte liga as pessoas. Liga. Não é comunicaçãozinha de branco de Ipanema.

Pausa.

A comunicação do campo de extermínio atlântico acabou destruiu o teatro deles. Não que não houvesse extermínio nos tumbeiros do tráfico. Mas a dor era arte e vice-versa.

Pausa. Um leproso tosse.

Fala, leproso.

O velho leproso de cabelos brancos se ajoelha (abre um bilhete e lê como uma ladainha):

… Que estava na origem das principais fortunas brasileiras/ no país com o maior número de escravizados da história / de onde até hoje / é impossível fugir / a nado / de barquinho / mas possível no quilombo / no terreiro / na graça da Liberdade / Liberdade do símbolo.

Pausa.

A segunda atriz suburbana abre um bilhete e tosse. Nada lê.

Pausa.

A primeira atriz suburbana abre outro bilhete. Lê:

A turma do teatro não perdeu o sentido do teatro. Perdeu somente a distribuição do sentido nas palavras e na escritura de palco, por sonora que fosse.

Pausa. Arranca o bilhete da primeira atriz suburbana e lê:

O marco foi a comunicação dos horrores dos campos de extermínio, filmados e projetados aos soldados da Wehrmacht e às populações adjacentes aos campos – feitas pelos soviéticos e outros aliados.

O velho leproso de cabelos brancos se auto fustiga. Saca um bilhete de seu paletó e lê, em forte lamento:

Sou culpado de adaptar dramas de Tchekhov / sem respeitar a coralidade / das presenças das personagens / aparentemente secundarias nos ambientes / eu, leproso velho / traí o sentido das discussões / mediante ofensas sub-reptícias / escondidas pela presença auxiliar / de estranhos aos conflitos pessoais / O publico deixa de se reconhecer nos palcos / Deixa de ir ao teatro / Que fica cada a dia mais caro e enfadonho / Sou culpado de traição ao teatro.

O velho leproso de cabelos brancos tira a sua camisa. Fustiga-se pesadamente. A segunda atriz suburbana pega outro bilhete e saca um punhal caído no chão. A primeira atriz suburbana o obriga a ler:

Campos que deveriam estar em Madagáscar / sonho inicial do Hitler / solução final / Hoje na mão de chineses, que compram e vendem / mais que europeus que colonialistas / na comunicação simbólica / cinematográfica / divisora de águas / da pandemia das lives.

Pausa.

O jovem e louco diretor de cinema lê outro bilhete, empunha a câmara e filma entusiasticamente:

Este é o sentido de denúncia intelectual que vejo nas lives, a manter a iconoclasta chama sacra do teatro – Que, ao morrer, não morre. Renasce. Este é o sentido. Quem lhe diz sou eu, um jovem cineasta morto.

Pausa.

A primeira atriz de subúrbio:

Falou difícil demais, velho! Nem na no mundo acadêmico falam assim.

Aplica-lhe dois tabefes.

O velho leproso de cabelos brancos:

Obrigado.

Outra atriz aplica-lhe mais dois tabefes:

Diga que merece.

O Velho leproso de cabelos brancos:

Sou um leproso.

A primeira atriz de subúrbio:

Diga que merece mais degredo e mais tabefes!

O velho leproso de cabelos brancos:

Eu mereço mais degredo e tabefes.

A segunda atriz de subúrbio:

Ofereça a outra face.

Pausa.

O velho leproso de cabelos brancos:

E os meus tabefes?

Pausa.

Eu mereço degredo e tabefes.

Pausa.

E a meritocracia?

Pausa.

Sou um leproso.

A primeira atriz de suburbana:

Chega! Não tem mais tabefe.

A segunda atriz de subúrbio (com o punhal em mãos):

Venha, cineasta jovem e louco cineasta. Venha filmar. Aqui não é Oriente.

O Cineasta filma o velho em primeiríssimo plano. Projeta-o na rotunda.

O velho leproso de cabelos brancos:

Eu mereço mais degredo e mais tabefes.

Pausa.

Eu mereço mais degredo e mais tabefes.

Pausa.

Eu mereço mais degredo e mais tabefes.

Pausa. Ele e desespera e se auto fustiga.

Amém.

Todos:

Amém.

Pano.

Fotos de Nelson da Rabeca – reprodução de https://anovademocracia.com.br/noticias/15565-nelson-da-rabeca-expressao-do-brasil-profundo